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O app Citizen faz sucesso ao revelar, em tempo real, os locais de crimes

Aplicativo estimula usuários a filmar e transmitir ao vivo ocorrências policiais com a promessa de contribuir para a segurança pública

Por Sabrina Brito Atualizado em 4 jun 2024, 15h01 - Publicado em 9 out 2020, 06h00

Em 2014, o filme O Abutre provocou certa polêmica ao fazer uma sátira sombria do telejornalismo policial. Desesperado para encontrar trabalho, o protagonista decide reportar crimes em Los Angeles. Ao longo da narrativa, ele se torna insensível às mortes que relata, passando a causar acidentes para ter histórias terríveis para contar. Devido a um aplicativo lançado nos Estados Unidos, o cenário está mais próximo do que nunca (sem a parte da criação de crimes, claro). Trata-se do Citizen, que permite que usuários transmitam ao vivo, via smartphone, ocorrências policiais como roubos, ataques, incêndios, vazamentos de gás e todo tipo de tragédia. Os donos do app dizem que o objetivo é informar os assinantes do serviço sobre as regiões que oferecem perigo, permitindo que desviem do caminho ou compareçam ao local para ajudar possíveis vítimas. Na prática, porém, o Citizen vai muito além disso.

O aplicativo conta com 5 milhões de usuários espalhados por duas dezenas de cidades dos Estados Unidos. Apesar do grande número de inscritos, nem todos são ativos na plataforma — a maioria fica apenas à espreita. Desde maio, o serviço ganhou nova função: ajudar as pessoas a rastrear a presença do coronavírus. Com a mesma promessa de fornecer um senso de comunidade e segurança aos participantes, o Citizen agora mostra em seu mapa estatísticas sobre a disseminação da Covid-19 pela cidade e fornece informações sobre as regulamentações impostas pelas autoridades para conter a pandemia.

À primeira vista, parece ser algo bastante positivo. Quem, afinal, não gostaria de saber os lugares em que há encrencas e manter distância segura deles? No mundo real, não é assim que as coisas funcionam. A polícia de Nova York, por exemplo, teme que o Citizen estimule a ação de justiceiros, o que seria uma óbvia violação das regras civilizatórias. Além disso, é preciso considerar o risco real de um cidadão despreparado interferir em uma ocorrência, o que seria perigoso para ele próprio e para os outros envolvidos.

Police car in Times Square
FORA DA LEI - Em Nova York: policiais temem que o aplicativo seja usado por justiceiros – (Travelpix/Getty Images)

Outro ponto negativo diz respeito à privacidade dos usuários. Para que o Citizen funcione adequadamente, a função de localização do celular deve estar sempre ligada. Ou seja: o aplicativo saberá o tempo todo o lugar exato em que o inscrito está. “Isso é preocupante, pois pode oferecer à empresa um mapeamento de hábitos de locomoção, endereço da residência e local de trabalho da pessoa”, diz Bruno Bioni, mestre em direito pela Universidade de São Paulo e consultor especializado em proteção de dados. O especialista diz que há limites jurídicos para o aplicativo. Vítimas dos acidentes que tenham sido eventualmente filmadas ou fotografadas podem processar o app pelo uso indevido de suas imagens. “Como a finalidade do aplicativo é o relato de crimes, indivíduos podem ser erroneamente identificados e sofrer danos decorrentes disso”, afirma.

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De fato, há inúmeros relatos de equívocos. Em Manhattan, um usuário relatou ter visto um tigre, mas descobriu-se depois que o animal em questão era um guaxinim. Episódios prosaicos como esse não causam maiores problemas, mas há o risco evidente de alguém confundir um criminoso com um cidadão comum. Existe a preocupação inclusive com a possibilidade de o aplicativo incentivar práticas racistas, imputando a negros crimes que eles não cometeram.

A empresa sp0n, dona do Citizen, diz que trabalha para corrigir eventuais erros de rota, mas destaca os alegados benefícios oferecidos pela tecnologia. Entre eles está, evidentemente, o aspecto da segurança. O discurso parece ter convencido o mercado financeiro. Recentemente, o Citizen levantou 60 milhões de dólares com fundos de investimentos, até mesmo de executivos graúdos. É o caso de Peter Thiel, cofundador do PayPal e um dos principais investidores da plataforma.

O Citizen não é o único aplicativo desse tipo disponível no mercado. Nos EUA, há pelo menos outras três plataformas parecidas. No Brasil, o B.O. Coletivo oferece aos inscritos a possibilidade de identificar as regiões mais violentas de uma determinada cidade e informar outros usuários sobre as ocorrências. Ele, porém, não conta com o principal atributo do Citizen: a transmissão de vídeos em tempo real. No fundo, é isso que atrai a curiosidade — e, provavelmente em alguns casos, o espírito mórbido — dos usuários.

Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708

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