Os moradores de Auckland, na Nova Zelândia, país da Oceania que se destacou com eficientes medidas de combate à pandemia do novo coronavírus, foram presenteados nesta semana com a realização da mais tradicional competição dos esportes náuticos: a 36ª edição da America’s Cup de iatismo. Grande evento da ensolarada temporada de verão, a copa chamou atenção por dois motivos: a presença de um público animado (composto só de espectadores locais, uma vez que a entrada de estrangeiros continua vetada) e, principalmente, a incrível destreza da equipe da casa, a Team New Zealand, pilotando o mais moderno dos veleiros, o AC75, um barco tão veloz — e aqui não se trata de força de expressão — que chega a voar.
Por ter sido campeã da edição anterior, em 2017, nas Bermudas, a Nova Zelândia tinha o direito de escolher qual tipo de veleiro seria usado em 2021. Optou por voltar às origens da competição, trocando os catamarãs, de dois cascos, pelo monocasco de décadas anteriores. A tradição, porém, veio acompanhada de um crucial toque high-tech: duas asas laterais pivotantes, em forma de T, capazes de erguer a embarcação e, assim, aumentar sua velocidade.
O conceito de iate voador não é inédito. Os primeiros hidrofólios, como são chamadas as asas que ficam submersas e projetam os barcos para cima, surgiram no fim do século XIX. Os modelos foram então sendo desenvolvidos aos poucos, até estrearem em competições internacionais no século XXI. Agora chegaram ao estado da arte.
O AC75 não tem as tradicionais quilhas, estruturas pesadas e com lastro de chumbo, que ficam embaixo dos barcos. São os hidrofólios, colocados para baixo ou para cima por meio de um sistema hidráulico, que estabilizam o veleiro. Debaixo d’água, essas peças funcionam como o leme de profundidade que faz uma aeronave mudar seu ângulo de ataque para subir ou descer. Quando elas são acionadas, a velocidade da embarcação, sem o atrito do casco com a água e utilizando a força dos ventos, cresce drasticamente. Feitas de fibra de carbono com infusão de resina epóxi, as asas são fortes o bastante para erguer o AC75, que pesa 6,5 toneladas (mais que o dobro do catamarã da regata anterior), mas chega a cerca de 90 quilômetros por hora (veja o quadro ao lado). Em outras palavras, o que antes se assemelhava a uma baleia, hoje mais parece um hidroavião. Outra novidade importante é uma vela mestra dupla, que também influencia na redução do arrastro aerodinâmico.
O bicampeonato neozelandês foi confirmado no último dia 17, com o placar de 7 a 3 sobre a equipe desafiante, a italiana Luna Rossa, que contava com um uruguaio naturalizado brasileiro, Horacio Carabelli, em sua equipe de coordenadores de design. A primeira-ministra Jacinda Ardern, como qualquer política, não perdeu a chance de surfar na onda esportiva para aumentar ainda mais sua popularidade. “Estamos muito orgulhosos de que a America’s Cup continuará com a Nova Zelândia”, discursou.
A competição é apontada como a Fórmula 1 do iatismo, tanto por trazer inovações tecnológicas quanto por sua tradição. A primeira edição foi realizada há 170 anos, em 1851, no Reino Unido, e ganhou esse nome após a vitória da equipe americana, a New York Yacht Club, que manteve a posse da taça — chamada de Auld Mug (Velho Caneco) — por mais de 130 anos, até 1983, quando finalmente foi arrebatada pelos australianos. Suíços e neozelandeses se juntariam ao hall dos campeões. Já os britânicos, criadores da copa, jamais a ergueram.
Outro paralelo com a categoria máxima do automobilismo é o prestígio que tem a America’s Cup, atraindo não apenas esportistas e projetistas, mas anunciantes de peso, como Prada, Louis Vuitton e Emirates (esse último o patrocinador da equipe campeã). Os investimentos também se equiparam: de 10 milhões a 15 milhões de dólares são consumidos na fabricação de uma unidade, e isso é apenas parte do custo total.
Como todo esporte, a America’s Cup também tem seus esqueletos no armário, com denúncias de sabotagem e trapaça. A última delas teria como vítima um brasileiro, o engenheiro naval Manoel Chaves, de 66 anos, dono da MPC Yachts, que alega ser o criador da tecnologia que deu origem ao AC75. O construtor diz ter patenteado seu modelo, tanto no Brasil quanto na Nova Zelândia, um ano antes de a Team New Zealand lançar o dela. A disputa foi parar na Justiça. Os advogados de defesa dizem que invenções náuticas têm muitos pais. Já o brasileiro garante ter todos os registros da paternidade. “Dinheiro para eles não é problema. Apenas se negam a dar os méritos a um engenheiro do Terceiro Mundo”, desabafou Chaves a VEJA. A batalha jurídica promete ser tão acirrada quanto uma corrida de barcos.
Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730