A missão do STF
Como Joaquim Nabuco disse, em relação ao fim da escravidão: há uma esperança infinita de que os dias dos barões da corrupção chegarão ao fim, cedo ou tarde
Com inspiração na Suprema Corte dos Estados Unidos, criou-se, no início da República, o Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF), e a ele foi atribuído o controle de constitucionalidade das leis. É um poder controverso, pois se trata, na prática, de outorgar a um órgão composto de profissionais do direito a revisão de políticas públicas formuladas por representantes eleitos pelo povo. São decisões de autoridades não eleitas sobrepondo-se a escolhas de autoridades sujeitas a eleições periódicas. Ainda assim, juízes podem acertar no exercício desse poder.
Ficaram famosas, por exemplo, decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos que contribuíram para a eliminação da segregação racial, como a que proibiu que crianças fossem separadas nas escolas por causa de sua cor. Mas houve também equívocos graves. Da própria Suprema Corte, podem ser encontrados maus exemplos, como as decisões que, no início do século XX, invalidaram leis que proibiam o trabalho infantil, por suposta violação da liberdade de contratar.
Entre erros e acertos da revisão judicial de leis, há quem defenda a tese de que as Cortes devem assumir uma postura de autocontenção e outros que advogam pelo ativismo. Em uma posição intermediária, há quem argumente que os juízes devem alternar autocontenção com ativismo, este focado em casos de mau funcionamento da democracia.
Tradicionalmente, o STF teve um papel de interferência na vida pública menos destacado do que a Corte americana. Mas esse quadro vem sendo alterado nos últimos anos, o que trouxe a Corte brasileira para o centro do debate público.
Embora o STF tenha tomado decisões relevantes na proteção de grupos minoritários, por exemplo, no reconhecimento da validade de relações homoafetivas, e na proteção da liberdade de expressão, a ilustrar, vedando censura prévia, é inegável que a sua atuação nos últimos anos vem se destacando no enfrentamento da corrupção.
Primeiro, pelo julgamento de ações penais originárias, como no mensalão, quando proferiu condenações contra criminosos poderosos; segundo, na adoção de uma postura mais rigorosa no julgamento de recursos contra decisões de cortes inferiores, como quando manteve a prisão de políticos e empresários poderosos; e terceiro, mais importante, no exercício do controle de constitucionalidade, proferindo decisões de cunho geral que representam verdadeiras medidas anticorrupção.
Na última hipótese, destacam-se: a decisão do STF que proibiu doações eleitorais corporativas, uma vez que elas, sem limites estritos, favorecem relações impróprias entre empresas e candidatos; os sucessivos julgamentos pelo STF no sentido de que a presunção de inocência não impede a execução de condenação criminal exarada por Corte de Apelação; e a interpretação restritiva do foro privilegiado, limitando este a acusações que envolvam crimes praticados no exercício da função.
A Constituição estabelece as regras do jogo político democrático. Proteger direitos de minorias mesmo contra a vontade de maiorias temporárias faz parte do trabalho de uma Corte Constitucional. Mas também faz parte de suas funções evitar a captura do aparato estatal por facções e interesses especiais.
“Se o Supremo voltar atrás nos avanços até o momento obtidos no enfrentamento da corrupção, o resultado será desastroso”
Considerando o grau de deterioração da coisa pública revelado no mensalão e na Operação Lava-Jato, não deixa de ser justificado algum ativismo judicial contra a corrupção.
Não se trata de defender interpretações criativas da Constituição. Trata-se de defender a igual e imparcial aplicação da lei contra o abuso sistemático do poder para fins privados. A lei deve valer para todos. O ativismo reside na estrita aplicação da lei mesmo contra interesses especiais. No Brasil, tal postura é revolucionária.
A Constituição Federal de 1988 não foi aprovada com o objetivo de estabelecer privilégios de impunidade para criminosos poderosos. Ela consolidou uma democracia, na qual o igual tratamento perante a lei é imperativo, e não uma sociedade de castas, com privilégios e imunidades. Ela estabeleceu que os governantes prestam contas aos governados, e não a irresponsabilidade dos poderosos.
O STF encontra-se atualmente diante de uma tarefa importante. De certa forma, trata-se de um desafio equivalente ao da Suprema Corte americana diante do cenário de segregação racial nos Estados Unidos na primeira metade do século passado. Importa abandonar a posição de conforto e, mesmo diante de alguma animosidade, prosseguir no desmantelamento da estrutura que propiciou o surgimento da corrupção sistêmica no Brasil.
Nunca à custa do devido processo, mas o devido processo jamais pode ser equiparado a privilégios de impunidade. O sistema de Justiça criminal não pode ser inoperante em relação aos crimes praticados pelos poderosos, entre eles a apropriação privada do Estado.
Não há ilusão de que o STF sozinho eliminará o sistema de corrupção que afetou a coisa pública. A corrupção sistêmica não pode ser superada unicamente com condenações criminais. São necessárias políticas públicas que reduzam incentivos e oportunidades para a prática da corrupção. O exemplo de lideranças políticas honestas, tanto no Congresso como no governo, é também fundamental. De todo modo, decisões do STF comprometidas com o fim da corrupção sistêmica e da impunidade têm relevância e podem estimular os demais Poderes a realizar a sua parte. Podem também incentivar a sociedade civil a cobrar de seus representantes eleitos posturas probas e políticas anticorrupção. Isso também ocorreu nos Estados Unidos em relação à segregação racial. A decisão da Suprema Corte para a dessegregação racial das escolas públicas é de 1954, mas a Lei dos Direitos Civis que completou a dessegregação foi aprovada só uma década depois, em 1964.
Retrocessos, mesmo disfarçados, seriam lamentáveis. Se o STF voltar atrás nos avanços até o momento obtidos no enfrentamento da corrupção, o resultado será desastroso. Se já tem sido difícil que os demais Poderes sigam os bons exemplos advindos das decisões recentes do STF, tudo estará perdido se a própria Corte rever seus precedentes.
Enfim, o STF, mesmo que em julgamentos apertados, proferiu decisões relevantes para o enfrentamento do sistema de corrupção. Tal atuação é produto de certo ativismo, ainda que este seja fundado não em interpretações constitucionais criativas, mas na exigência fundamental de que a lei seja aplicada de maneira igual para todos. Algum ativismo não é inconsistente com a missão de uma Corte Constitucional, máxime quando os demais poderes se mantêm inertes quanto às suas responsabilidades. Guardadas as diferenças, o STF promove uma mudança constitucional relevante, eliminando privilégios de impunidade e enfrentando a corrupção sistêmica, assim como fez a Corte americana ao dar impulso ao fim da segregação racial nos Estados Unidos. A dúvida atual é se o STF persistirá nessa tarefa ou se retrocederá — e, com ele, todos nós. Em qualquer hipótese, é de manter, como Joaquim Nabuco disse em relação ao fim da escravidão, uma esperança infinita de que os dias dos barões da corrupção chegarão, cedo ou tarde, ao fim.
* Sergio Moro é juiz federal
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601