Muito além do açaí e do guaraná, dispara interesse por sabores da Amazônia
Uma tendência que, fora o apelo ao paladar, traz toques de culinária ancestral e de sustentabilidade
De Carlos Drummond de Andrade, em um dos aforismos de O Avesso das Coisas: “A natureza não faz milagres, faz revelações”. E aí está a Amazônia, tão reconhecida pela sua relevância ambiental, para comprovar a máxima do poeta mineiro. Não bastasse ser o maior polo de biodiversidade do mundo, a floresta anda exportando ingredientes, de cores, aromas e sabores infinitos, para restaurantes e empresas nacionais e internacionais de alimentos. É uma das mais importantes tendências atuais da gastronomia.
A comida amazônica caiu no gosto, e não por acaso Manaus entrou na lista de melhores destinos turísticos do gênero do jornal americano The New York Times em 2023. São frutos, raízes, hortaliças e peixes, alguns deles exclusivos da Região Norte do país. Ao serem adotados por grandes chefs de cozinha e pela indústria alimentícia, atraem novos mercados e consumidores. Some-se ao paladar e às tonalidades o tom adequado aos humores da humanidade: valorizam-se, por tabela, os conhecimentos dos povos originários e o permanente respeito à sustentabilidade. É bom e do bem.
Como constatação do sucesso, a maior floresta tropical do planeta será o tema da próxima edição do prestigiado Fórum Gastronômico Internacional Alimentarte, organizado pelo instituto espanhol Basque Culinary Center. O encontro, que será realizado no fim deste mês na Colômbia, reúne cozinheiros, sommeliers e especialistas para discutir a evolução da culinária moderna. “A Amazônia é um celeiro de ingredientes e de cultura”, diz Thiago Castanho, chef do Remanso do Peixe, restaurante em alta de Belém do Pará. Famoso por iguarias como o pão sírio de mandioca com camarão seco, a pupunha com tucupi e a sobremesa de cupuaçu com polvilho de farinha de mandioca e babaçu, Castanho também ganhou as páginas do The New York Times, que o chamou, com pompa e circunstância, de um dos chefs mais inovadores do Brasil.
Ele brilha ao lado de nomes como Felipe Schaedler, chef do premiado restaurante Banzeiro, em São Paulo — “há uma fome pela Amazônia”, diz ele —, e Saulo Jennings, do Casa do Saulo, no Rio de Janeiro. Schaedler é um dos responsáveis pela disseminação da cozinha manauara e dos arredores. Seus pratos arrojados, em especial os elaborados com tucupi — que ele considera o “shoyu” amazonense — e com os peixes tambaqui e pirarucu, alçaram a condição de obras de arte. Há espaço, claro, para as sobremesas. Nesse campo, quem se destaca é a sorveteria Bárbaros, de São Paulo, que oferece um leque inusual de perfumes, como os de buriti, pupunha, cumaru, chocolate defumado com pimenta baniwa e tucupi negro — os dois últimos obtidos do povo indígena baniwa, que vive no Alto Rio Negro. “Sou amazonense, convivo com a terra, então os sorvetes não poderiam ser diferentes”, diz Maurício Prado, dono da marca, ao lado da mulher, a cozinheira Milene Ribas.
Há um charme inescapável, de mãos dadas com o zelo ambiental: os processos artesanais de preparação e técnicas culinárias que passam de geração em geração e se sobrepõem aos excessos de requinte um dia promovidos pela alta gastronomia. É mudança de conceito abraçada por estrelas evangelizadoras como o brasileiro Alex Atala. Pesquisas recentes dão nome e rosto ao fenômeno. A multinacional Kerry investigou as mais recentes ondas à mesa e nas prateleiras de supermercados. O resultado: cupuaçu, graviola e castanha-do-pará estão em alta. Os motivos? São ricos do ponto de vista nutricional. Representam consumo correto, já que o manejo e a extração responsáveis geram renda para as comunidades locais. “Respeitam o planeta ao preservar os biomas, propósito fundamental nos dias de hoje”, diz Maurício Bonfim, chef e gerente de inovação culinária da Kerry.
É com essa inspiração que surgem novidades como o “superalimento” em pó da startup Mahta, feito a partir de quinze itens amazônicos e a promessa de dar mais equilíbrio e energia ao corpo no dia a dia — as vendas do preparo subiram 1 000% entre julho de 2022 e abril de 2023. E viva a Amazônia, tão ferida, que, se não é milagrosa, ao menos é reveladora, como cantou em versos o poeta.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2023, edição nº 2841