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Pela primeira vez em duas décadas, Erdogan tem poder abalado

O populista de direita que comanda a Turquia enfrentará um segundo turno — sinal de novos ventos

Por Caio Saad Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h34 - Publicado em 20 Maio 2023, 08h00

Situada entre a Europa e a Ásia, a Turquia balança entre dois mundos e sempre procurou tirar proveito dessa posição estratégica. Nenhum de seus governantes, no entanto, aprimorou a arte de costurar de um lado e de outro com tanto vigor quanto Recep Tayyip Erdogan, 69 anos, no poder há duas décadas e, hoje, às voltas com o inédito desafio de se perpetuar no comando do país que vem liderando com garras cada vez mais afiadas. Figura controvertida, com acentuado pendor para o autoritarismo e talento para assumir papel de destaque mesmo quando não é bem-vindo, Erdogan vinha ganhando eleições em série de lavada, mas os ventos agora são outros: pela primeira vez na história moderna da Turquia, iniciada há um século, a corrida presidencial vai ter segundo turno, marcado para 28 de maio — o que, por si só, representa um baque para o incômodo autocrata que as grandes potências do Ocidente tanto gostariam de ver longe. “O que observamos é a Turquia e a União Europeia se movendo em direções opostas”, resume Selim Kuneralp, ex-embaixador turco na UE.

O duelo que Erdogan trava com Kemal Kilicdaroglu, o expoente da oposição que teve o mérito de embalar uma frente de seis partidos à esquerda e à direita, parece pender mais para o atual dono da cadeira, que obteve 49,6% dos votos versus 44,8% do adversário (para fechar a fatura, 50% dos turcos teriam de ter assinalado seu nome). Apesar de ter se saído melhor do que o previsto nas pesquisas — com seu partido e aliados arrebanhando 321 de 600 assentos no Parlamento, ante os 213 contabilizados pelo oponente —, Erdogan caminha sobre um terreno movediço que vem lhe subtraindo a antes inabalável popularidade. Contra ele pesam a inflação disparada (no ano passado bateu os 80%) e uma população jovem aspirando à democracia plena. Para complicar as coisas, o presidente turco ainda sente o baque do terremoto de fevereiro, uma das maiores tragédias da história nacional, que matou 45 000 pessoas na Turquia e ceifou mais 7 000 vidas na vizinha Síria. Sua atuação aí foi vista como lenta frente à escala do drama humano, percepção que só fez piorar com a enxurrada de denúncias de existência de construções ultraprecárias, resultado de corrupção em instâncias oficiais.

OPONENTE - Kilicdaroglu: frente de oposição contra o autocrata
OPONENTE - Kilicdaroglu: frente de oposição contra o autocrata (@K.Kilicdaroglu/Facebook)

O tremor devastador acabou por colocar em segundo plano a estratégia adotada por Erdogan para conquistar prestígio e votos dentro do país por meio de uma agressiva política externa de cunho intervencionista, estimulada pela guerra na Ucrânia. Embora não faça parte da União Europeia (sonho que acalenta há décadas), a Turquia é membro da Otan, a aliança militar ocidental, e Erdogan tomou para si a função de elo de ligação entre a organização e a Rússia, mantendo frequentes encontros com o presidente Vladimir Putin. Jogando de cá e de lá, bem a seu gosto, ele conseguiu alinhavar um bem-vindo acordo que permitiu a exportação de grãos ucranianos, então vetada pela frota russa no Mar Negro, estendido nesta semana por mais dois meses, ao mesmo tempo que, ao contrário de seus pares na Otan, burlava as sanções impostas ao país de Putin. Em outra ação que traz dor de cabeça aos europeus, Erdogan trava a entrada da Suécia no bloco militar (a aceitação tem de ser unânime), alegando que ali estão abrigados terroristas — no caso, militantes curdos, etnia com a qual vive às turras. “O outrora regime democrático, sustentado pela aspiração de aderir à UE, deu lugar a um governo de um homem só”, diz o pesquisador Dimitar Bechev, do instituto Carnegie Europe.

O islamismo é um dos pontos fortes da plataforma de Erdogan, que reinstituiu um tom religioso ao governo e assim agradou especialmente aos mais pobres e menos instruídos, inconformados com a secularização a toque de caixa da Turquia moderna. Enveredando pela mesma linha ultraconservadora que ganha eco mundo afora, o presidente reprime com energia dissidentes, minorias étnicas e a comunidade LGBTQIA+. “A Turquia chegou a um ponto em que simplesmente estava longe de dispor de celas suficientes para prender todas as pessoas pelas quais Erdogan se sentia ameaçado”, diz Moisés Naím, ex-diretor-executivo do Banco Mundial e autor de A Vingança do Poder, sobre a proliferação dos autocratas e publicado no Brasil pela editora Cultrix. Enquanto a imprensa livre é condenada (após uma tentativa de golpe em 2016, o país ficou conhecido como a maior prisão de jornalistas do planeta), a imprensa estatal é amiga. Segundo relatório da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (Osce), as emissoras oficiais de rádio e TV dedicaram 44% de sua cobertura enaltecendo grandes feitos de Erdogan e reservaram apenas 28% do tempo à oposição, sobre a qual salientavam aspectos negativos, em nítida campanha.

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REVOLTA - O povo nas ruas: crise na economia e terremoto cobram seu preço
REVOLTA - O povo nas ruas: crise na economia e terremoto cobram seu preço (Yasin Akgul/AFP)

Dos antigos sultões otomanos ao fundador do Estado turco moderno, Mustafa Kemal Ataturk, e todos os seus sucessores, a Turquia exibe uma arraigada tradição de Estado paternalista e populista. Vinha dando certo para Erdogan, mas o controle de seu partido, o AKP, está se esgarçando na esteira de decisões centralizadoras que cobram seu preço no bolso da população. A insistência do governo, que intervém a torto e a direito no Banco Central, em cortar taxas de juros em tempos de inflação acelerada beneficiou os mais ricos, ao passo que os alimentos e aluguéis só encarecem, insuflando a insatisfação nas ruas. Na reta final do primeiro turno, o presidente botou, sem cerimônia, a máquina pública para funcionar a seu favor, liberando as pessoas do pagamento da conta de gás e concedendo aumentos estratosféricos aos servidores. Isso ao que parece o ajudou, mas não foi o suficiente para evitar que Erdogan e seu regime de acentuadas tintas autoritárias passassem por um segundo escrutínio popular. Ganhando ou perdendo, esta é a grande novidade.

Publicado em VEJA de 24 de maio de 2023, edição nº 2842

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