Geração sem tabu: pesquisa inédita faz mergulho na juventude do Brasil
A turma não se curva às tradições e se sente mais à vontade para cutucar vespeiros
Nem sempre a janela de tempo compreendida entre a infância e a vida adulta foi separada pelo que se convencionou chamar de juventude. Em antigas civilizações, a humanidade costumava marcar tal transição com ritos de passagem em que, de uma hora para outra, meninos e meninas assumiam responsabilidades que cabiam aos mais velhos. E essa dinâmica, que não reconhecia fase tão marcante na existência dos indivíduos, se manteve praticamente inalterada até o século XX, com uma turma de pouca idade precocemente constituindo famílias e estreando no mercado de trabalho. A invenção da juventude tal qual a conhecemos só veio a se sedimentar após a II Guerra Mundial, quando as primeiras vozes dessa faixa etária, massacrada no conflito, se elevaram e conquistaram espaço. A partir daí, transcorreu um período no qual rebeldia e transgressão formaram um caldeirão tão potente que eles, os jovens, assumiram de vez o leme das transformações sociais, culturais e políticas. E o mundo nunca mais foi o mesmo.
Lá se vai meio século desde a era dos hippies até os ultraconectados dias de hoje, um dilatado tempo que produziu gerações em tudo distintas — menos no desejo de chacoalhar valores preestabelecidos. Um inédito estudo, conduzido pelo Instituto AtlasIntel a pedido de VEJA, mergulhou a fundo na multidão de brasileiros e brasileiras que nasceram no início deste século, com idades entre 16 e 24 anos, que não deixa dúvidas sobre um ponto essencial que os caracteriza: a determinação de deixar por terra vários tabus arraigados em outros estratos da população. No geral, eles têm a cabeça aberta, afeita à tolerância e à diversidade em seu sentido mais amplo, e são menos amarrados a convenções que tanto balizaram as últimas décadas, seja no trabalho, seja no campo das relações familiares e amorosas. “Não dá para compreender o jovem moderno sem entender o seu entorno, bombardeado por uma quantidade de estímulos muito maior do que as gerações anteriores”, diz o cientista político Andrei Roman, CEO da AtlasIntel.
No caldo que o levantamento traz à tona fica claro que essa turma não segue modelos rígidos de hierarquia e tem uma maneira própria de encarar o sucesso, entrelaçada com a ideia de felicidade. Percorrendo os dados, chama ainda mais atenção sua visão livre no campo da sexualidade. O levantamento, que ouviu 2 000 pessoas de todas as regiões do país, indica um número surpreendente de jovens que se declaram bissexuais ou pansexuais, aqueles que se veem atraídos por gente de todos os gêneros e orientações sexuais. Eles representam 17,4% dos entrevistados — número que supera em quatro vezes a média nacional (veja no quadro). O avanço civilizatório aí é que eles relatam não terem sentido nem culpa nem preconceito ao virem à luz do jeito que são. “Me relaciono com meninas e meninos, mas não gosto de me encaixotar nessas classificações. Prefiro assumir uma postura mais leve”, diz o universitário Lucas Martins, 22 anos. Filho de pastor, ele rompeu com a ideia inabalável de família com a qual conviveu até os 18 anos na igreja que frequentava — onde, aliás, apenas a união heterossexual era reconhecida. “Foi libertador não precisar me esconder. Esse é o legado da minha geração”, pontua o estudante.
Os laços matrimoniais também não são vistos como algo determinante para essa turma, que, ao contrário de outras faixas, dá menos importância ao tradicional enredo de casar e ter filhos — para muita gente, uma linha quase que obrigatória. É verdade que não são tantos que admitem a possibilidade de um relacionamento aberto, mas eles são bem mais incidentes na aceitação desse arranjo do que o restante dos brasileiros (8% versus 2%). “Os jovens, que naturalmente têm menos compromissos com filhos e família, podem e querem se abrir a essas experiências”, ressalta a psicanalista Regina Navarro Lins. As gerações que os antecederam, evidentemente, deixaram bem plantada a semente da mudança, que germina agora como nunca antes. “A grande revolução sexual aconteceu nos anos 1960, com a pílula, a contracultura, o feminismo e o movimento hippie. O que assistimos hoje é o resultado de anos da luta que se aprofundou ao longo do tempo”, diz a antropóloga Mirian Goldenberg.
As convenções que começaram a ser questionadas lá atrás por uma barulhenta ala do mundo Ocidental continuam a ser postas à prova no modo de vida da juventude atual, e com grande ênfase. “É uma geração com uma maior abertura para se posicionar sobre qualquer assunto e com menos preconceitos diante de todos os aspectos da vida. Nos dias de hoje, o que pega mal são os prejulgamentos”, aponta a psicanalista Lidia Aratangy. Motivo de tantos conflitos entre pais e filhos, o uso de drogas é encarado com mais naturalidade pela geração Z — um de cada cinco indivíduos entre 16 e 24 anos se revela a favor da descriminalização da maconha, índice acima da média nacional. “Não vejo sentido em vender cigarro e álcool legalmente e não liberar a maconha. O tráfico mata mais do que a droga em si, não há por que sustentar um comércio ilegal”, argumenta a paulista Luna Rodrigues Padovan, 20 anos, estudante de medicina, que admite ser usuária eventual de maconha.
As causas ambientais e sociais costumam incendiar esta geração, que tem na sueca Greta Thunberg um ícone. Mas, para eles, o ativismo se dá em boa medida nas redes, ambiente onde o jovem se sente à vontade para fazer amigos e cancelar sem dó quem se posiciona de maneira contrária a ele. A pesquisa reforça ainda que o universo virtual é o preferido para tecer contatos de todo gênero e, sim, o trabalho remoto prevalece sobre o presencial no gosto dessa turma. O futuro profissional é uma incógnita que paira sobre suas cabeças e os angustia. “Atualmente, há muito mais incertezas no horizonte de quem está percorrendo a travessia para a vida adulta. O mercado de trabalho não tem mais as mesmas garantias de antes”, analisa Regina Maria Barbosa, pesquisadora do núcleo de estudos de população da Unicamp. A saída arquitetada pela maioria é se tornar dono do próprio negócio. “Hoje posso trabalhar de qualquer lugar do mundo. Não teria a mesma satisfação pessoal em um emprego comum”, reconhece a gaúcha Patrícia Vogtt, 23 anos, que montou uma agência de intercâmbios para levar pessoas como ela ao exterior e agora passa uma temporada na Itália, depois de viver em outros quatro países.
Viver imerso neste terreno de altas trepidações e instabilidades tem suas consequências — e elas vêm sendo mensuradas. Um estudo conduzido pela Unicef, que compilou dados em 23 países e reuniu uma amostra de 120 000 entrevistados, mostra que a prevalência de ansiedade e depressão é maior entre a população que se aproxima da vida adulta, um dado que põe os especialistas em alerta. A pesquisa da AtlasIntel aponta que uma das grandes fontes de insegurança juvenil é com o próprio corpo. A boa notícia, enfatizada pelo levantamento, é que 51% dos jovens já procuraram ajuda de um profissional para cuidar da saúde mental ou cogitam fazê-lo. Cutucar o tema, que muitas vezes repousa no silêncio por pura vergonha, não é problema para eles. “Muita gente da minha geração está combatendo a cultura de não falar sobre o assunto. Isso cria uma rede de apoio que ajuda muito”, garante Clara Verly, 21 anos, estudante de psicologia que foi diagnosticada com transtorno de ansiedade. E assim vai caminhando a jovem parcela da humanidade, cada vez mais disposta a derrubar tabus.
Publicado em VEJA de 28 de Junho de 2023, edição nº 2847