Tarcísio lidera disputa para ocupar espaço de Bolsonaro na centro-direita
Diante da decisão do TSE pela inelegibilidade do ex-presidente, governador de São Paulo é tido como herdeiro natural do capitão no embate com o PT
Uma das principais lideranças em ascensão no cenário nacional é a de um político improvável. Discreto burocrata com passagens pelos governos Dilma Rousseff e Michel Temer, período em que ganhou fama de técnico competente, o governador de São Paulo, Tarcísio Gomes de Freitas (Republicanos), começou a merecer mais holofotes ao assumir o Ministério da Infraestrutura na gestão de Jair Bolsonaro. Uma de suas marcas consistiu em levar adiante a política de concessões na área de transportes. Foi por determinação do chefe, aliás, que entrou na corrida ao Palácio dos Bandeirantes. Tido como azarão na disputa (no início da campanha, nem ele achava que teria chances, pela inexperiência e por ser carioca, com poucas ligações com São Paulo), surpreendeu nas urnas, encerrando três décadas de domínio do PSDB. “Nunca imaginei estar hoje aqui e devo isso a Bolsonaro”, costuma dizer, referindo-se à cadeira de comando do estado mais poderoso da federação.
Agora, por ironia, diante da condenação do capitão no TSE, que por 5 votos a 2 o tornou inelegível até 2030, Tarcísio é tido como o natural herdeiro. Ainda que a próxima corrida ao Palácio do Planalto esteja distante, seu nome aparece como o favorito para ocupar o espaço da direita no embate com o PT, empunhando a bandeira de um “bolsonarismo light”. O estilo pode ser traduzido nos seguintes termos: conservador nos costumes e liberal na economia, mas sem os arroubos que fizeram a (má) fama de seu mentor. Em conversas privadas, Tarcísio diz que seu foco é fazer uma grande gestão, deixando marcas importantes no estado, para tentar a reeleição. A pessoas mais próximas, no entanto, admite que não está descartada uma candidatura ao Planalto. “É uma opção que está na mesa, mesmo não sendo meu foco atual”, confidenciou em uma conversa recente.
Além de muito comentada em círculos políticos e empresariais, a possibilidade de o governador paulista despontar como presidenciável já começou a ser testada junto aos eleitores. Tarcísio apareceu em primeiro lugar em um levantamento do Paraná Pesquisas que mediu a percepção do eleitorado a respeito dos possíveis herdeiros políticos do ex-presidente. Na sondagem feita em maio, Tarcísio surge com 25,8%, à frente de nomes como a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (14,3%), o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo, 9,3%), o senador Flávio Bolsonaro (PL, 8,2%) e o governador do Paraná, Ratinho Junior (PSD, 6,8%).
Uma das vantagens de Tarcísio sobre os demais — fora do círculo familiar de Bolsonaro, evidentemente — é a sua identificação com o ex-presidente, que o governador faz questão de reforçar em eventos públicos e privados. “Tarcísio teria a vantagem de conseguir agregar 100% dos votos de Bolsonaro e também votos de centro”, avalia o deputado Capitão Augusto (SP), um dos vice-presidentes do PL. Para uma figura importante da cena política paulista, que pediu anonimato, o risco é exagerar na dose de ligação com o seu “criador”: “Ele não pode ficar contaminado pelo Bolsonaro. Para isso, não precisa renegá-lo, mas, sim, criar uma identidade própria”.
Vale lembrar ainda que Tarcísio conta com a poderosa máquina do governo. Embora desde a redemocratização o eleitor não tenha alçado ninguém do governo do estado ao Palácio do Planalto, ele reúne condições de quebrar a escrita, algo reconhecido mesmo por quem não faz parte de seu círculo direto. “Vem fazendo um bom governo, com postura econômica liberal e bom posicionamento social”, elogia o ex-governador João Doria. Da gestão tucana, Tarcísio recebeu a casa “em ordem”, com 34 bilhões de reais em caixa e centenas de obras e projetos em execução, que são agora a principal vitrine para uma futura reeleição ou voos mais altos. Para os próximos anos, Tarcísio deve entregar até 34 estações de metrô. Em viagens ao exterior, tem reunido sinalizações de investimentos que podem chegar a 190 bilhões de reais, valor do portfólio do estado em projetos de privatizações e PPIs. No pacote de entregas previstas no estado, somam-se três hospitais importantes — Peruíbe, Cruzeiro e Franca —, a operação integral do Rodoanel até 2026 e mais de 2 600 quilômetros de rodovias recuperadas.
Enquanto se prepara para cortar as faixas de inauguração das novas obras, o governador faz gestos significativos para se mostrar um legítimo “bolsonarista light”. Em passagem recente por Portugal, participou do Fórum Jurídico de Lisboa, liderado pelo ministro do STF Gilmar Mendes, ocasião na qual elogiou o papel da Corte na defesa da democracia, gesto que o distancia bastante do bolsonarismo-raiz. A preocupação com o respeito às instituições ficou clara também durante a tragédia do Litoral Norte de São Paulo, no início do ano, quando apareceu ao lado de Lula para passar o recado de que as necessidades de governo estão acima de diferenças ideológicas e políticas. Na área de segurança, deixou de lado a retórica de campanha e manteve a política de câmeras nos uniformes dos PMs. Algum tempo depois, surpreendeu ao sancionar a lei que garante a Cannabis medicinal pelo SUS, no estado, a grupos como autistas e portadores de Parkinson. Ele vem equilibrando esses gestos mais liberais com acenos claros ao público conservador. Na mais recente edição da Parada do Orgulho LGBTQIA+, por exemplo, contribuiu financeiramente, mas passou longe da Avenida Paulista no dia da celebração.
Esse esforço para não desagradar aos bolsões mais conservadores tem rendido frutos. O governador foi recebido com aplausos na Agrishow, maior feira do agronegócio do país, em Ribeirão Preto, no interior paulista, e na Marcha para Jesus, que reúne uma multidão de evangélicos na capital do estado. Nas mesmas ocasiões, representantes do governo federal enfrentaram saias-justas. Na feira ruralista, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, se sentiu “desconvidado” depois de receber uma ligação do presidente da Agrishow informando-o de que Bolsonaro iria ao evento, levado pelo governador. Subindo em um trator como se fosse um palanque, Bolsonaro faturou aplausos de mãos dadas com Tarcísio. Na passeata evangélica, que se tornou patrimônio cultural imaterial do estado em lei sancionada pelo governador em março, ele discursou que “o caminho é se afastar do pecado” e pediu orações para “nos conectar ao Espírito Santo”. A mesma plateia vaiou o ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias, enviado por Lula — que também foi vaiado ao ser citado.
Sinais como esses fortalecem a avaliação de que Tarcísio tem um caminho promissor. Se Bolsonaro, do alto de sua rejeição, perdeu por pouco de Lula, um candidato conservador que conseguir atrair eleitores de centro tende a ser muito forte no enfrentamento com o PT em 2026 (veja reportagem na pág. 36). “O voto que precisamos conquistar é o do centro, então deve-se manter um discurso de centro, que vai atrair a maioria das pessoas”, diz o presidente do PP e ex-ministro da Casa Civil do governo Bolsonaro, senador Ciro Nogueira (PI). Outro que vê o campo conservador como favorito é o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que declarou que a inelegibilidade de Bolsonaro favoreceria candidaturas como a de Tarcísio. “O candidato que surgir não terá os mesmos fatores de desgaste e rejeição que Bolsonaro. No entanto, nenhum dos nomes ventilados para substituí-lo se colocará como candidato antes que o próprio Bolsonaro jogue a toalha”, pondera o cientista político Antonio Lavareda, diretor do Ipespe. Dentro dessa visão, a unção oficial do “herdeiro” por parte do capitão ainda levaria tempo, até que todos os recursos do ex-presidente sejam julgados em Brasília.
Encantar o eleitorado conservador parece ser a parte mais fácil de Tarcísio daqui para a frente. No começo da sua gestão no governo, ele já trombou com dificuldades, boa parte relacionada ao ambiente político do estado. Na Assembleia, sofreu resistências na bancada do PL, sobretudo de deputados que se sentem “preteridos”. Mais recentemente, tornou-se alvo da fúria de parte do União Brasil, que pleiteia a Secretaria de Habitação — pasta com recursos vultosos para obras pelo estado e cujo comando teria sido negociado com Tarcísio na campanha. Reclamam ainda da falta de acordos sobre cargos em segundo e terceiro escalões. A queixa principal é a de que as indicações são passadas ao secretário de Governo, Gilberto Kassab, mas que o secretário da Casa Civil, Arthur Lima, não as tem atendido. Essa trombada é especialmente delicada, pois envolve os dois homens mais fortes do Palácio dos Bandeirantes. Kassab foi um dos responsáveis pela candidatura de Tarcísio, enquanto Lima é um nome da cota pessoal do governador. Na última semana, o União obstruiu a votação de um projeto do governo para captação de recursos para o transporte. Deputados da bancada já declararam que a orientação para bloquear futuras votações está mantida, o que pode pôr em xeque propostas importantes para o governo — como a iminente reforma administrativa e até a futura privatização da Sabesp. Tarcísio tem garantido que não vai negociar mudanças em seu secretariado em troca de apoio e que prefere, inclusive, sofrer eventuais derrotas do que desmembrar o seu “time técnico”.
Na política nacional, uma eventual articulação presidenciável demandará alinhamentos com diversos caciques, sobretudo ao centro. Kassab, o “dono” do PSD, gosta de dizer que o projeto do governador é o da reeleição, mas há quem aposte que se trata apenas de uma tática para despistar o plano maior para 2026. No PL, a tumultuada relação entre Tarcísio e o mandachuva Valdemar Costa Neto num passado não tão distante é frequentemente lembrada. Os dois se estranhavam à época em que o governador atuou como dirigente do Dnit, área de influência de Valdemar no Ministério dos Transportes no governo Dilma, com a missão de limpar a corrupção da área. Aliados de Tarcísio afirmam que essas diferenças pesaram — e muito — em sua opção por filiar-se ao Republicanos, e não ao PL. Para os entusiastas de uma candidatura presidencial, nada disso representa um obstáculo incontornável. “Política tem fila e o governador de São Paulo sempre está em primeiro lugar, por conta do tamanho do estado”, diz Ciro Nogueira, para quem Tarcísio conseguiria aglutinar em torno de si siglas como Republicanos, PP, PSD, PL, União Brasil e parte do MDB.
Antes de definições a respeito de seu rumo em 2026, o próximo teste ao poder político de Tarcísio se dará nos pleitos municipais de 2024. Partidos aliados, sobretudo PSD e PL, têm feito uma ofensiva sobre o espólio de prefeitos do enfraquecido PSDB. No entorno de Tarcísio, estima-se que, concluído o troca-troca partidário antes da eleição, o PSD de Kassab saia com 250 prefeitos, o PL com 120 e o Republicanos com oitenta. Se no interior do estado, solo amplamente permeável ao bolsonarismo, as articulações da base de Tarcísio são alvissareiras, encontra-se na capital o maior desafio ao grupo, que trabalha pela reeleição do prefeito Ricardo Nunes (MDB). Alçado ao cargo após a morte de Bruno Covas, em 2021, Nunes se vê em um cenário em que seu principal adversário, o deputado Guilherme Boulos (PSOL), desponta como líder nas pesquisas. O PL deve indicar o vice de Nunes. O governador, além de aprovar esse nome, terá papel fundamental na tentativa de fazer decolar a candidatura à reeleição do prefeito.
Esses desafios políticos são novos na vida de Tarcísio. Aluno acima da média, decidiu ainda adolescente que faria carreira no Exército. Fez prova para o colégio militar, onde foi premiado com uma das 24 vagas. Aos 16, prestou concurso para a Escola Preparatória de Cadetes, em Campinas, onde terminou o ensino médio e, de lá, seguiu para a Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ). Apaixonou-se por engenharia e decidiu que iria entrar no Instituto Militar de Engenharia (IME), um dos mais concorridos do país. Mais uma vez, deu certo: terminou em primeiro lugar, com a maior média histórica do curso. Nos anos seguintes, participou de projetos de cooperação do Exército na Amazônia, onde atuava em obras em locais com pouca logística.
Deixou o Exército em 2008, de onde seguiu para um cargo concursado na Controladoria-Geral da União, na área de auditoria de obras públicas. Na sequência, foi convidado a assumir o Dnit. Anos depois, chegou ao Ministério da Infraestrutura de Bolsonaro pelas mãos de aliados como a senadora Tereza Cristina, o ex-deputado Major Vitor Hugo e, sobretudo, o ministro do Tribunal de Contas da União Jorge Oliveira, amigo do capitão há décadas e colega do governador nos tempos de colégio militar. Apesar do currículo no Dnit e das famas de “pé de boi” e “supertécnico”, ele não era a primeira opção para o posto. A área estava reservada ao general Oswaldo Ferreira, responsável pelo programa da campanha de 2018 nesse setor, e ainda houve sondagens ao general Joaquim Brandão. Tarcísio foi a terceira opção, mas convenceu Bolsonaro ao conversar com ele sobre a vaga, levado por Oliveira.
Dentro de um governo problemático, ele conseguiu chegar ao final sendo um dos poucos membros da Esplanada a sair de lá com uma imagem positiva. Embora Bolsonaro tenha evitado publicamente passar o bastão para ele (numa entrevista recente ao jornal Folha de S.Paulo tergiversou a respeito dessa possibilidade), o capitão já confidenciou a pessoas próximas que o considera mesmo o seu herdeiro natural. É uma credencial importante para o político improvável chegar ainda mais longe.
Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848