Pesquisa revela as origens da forte atração do ser humano pela nostalgia
O sentimento tende a distorcer a realidade, onde o presente seria sempre pior do que o que já passou
O mundo girou de forma espetacular nas últimas décadas, trazendo avanços notáveis e grandiosos desafios à humanidade. Nesse dilatado período, as referências culturais passaram por radicais mudanças, os objetivos de vida foram se transformando e os valores se amoldaram ao curso da história. O que parece imutável em meio a tantos sacolejos é o pendor dos indivíduos, não importa a época em que vivem, em olhar para trás e enaltecer o passado, envoltos em uma aura de saudosismo. Quem nunca ouviu frases do gênero “Agora está tudo uma bagunça, a juventude não é mais a mesma. No meu tempo é que era bom”? A essa saudade, alimentada pela idealização do que já passou, se dá o nome de nostalgia — um sentimento que acompanha homens e mulheres desde os primórdios. No Império Romano, o historiador Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.) já conferia visibilidade ao fenômeno quando escreveu: “No amanhecer sombrio de nossos dias modernos, não podemos suportar nossas imoralidades nem enfrentar os remédios necessários para curá-las”.
“Nem a memória individual nem a memória coletiva são fotografias do que realmente aconteceu. São reconstruções.”
Depois de investigar a questão durante sete décadas, pesquisadores das universidades americanas de Columbia e Harvard conseguiram dar a dimensão à tendência nostálgica que ronda pessoas das mais diversas eras e lugares. Foram ao todo 12 milhões de entrevistados de diferentes faixas etárias em mais de sessenta países — entre eles Brasil, Estados Unidos, França e Japão. E não deu outra: a imensa maioria sustenta a existência de um declínio moral na sociedade, que estaria se tornando menos honesta, solidária, gentil e humana. De 177 itens analisados, em 148 deles (84%) a avaliação foi de piora em comparação ao que se foi. Em paralelo, os estudiosos se debruçaram sobre a realidade objetiva e concluíram que a percepção de retrocesso no campo da moralidade não tinha eco nos fatos. Seria, portanto, um mito. Daí o título do trabalho, recém-publicado na revista Nature: “A Ilusão do Declínio Moral”.
Um mergulho nas raízes dessa marca humana que emerge do vasto estudo desvenda os mecanismos psicológicos que fazem com que o passado seja idealizado, enquanto o presente soa insatisfatório para tanta gente. E eles guardam uma direta relação com engrenagens da memória que distorcem o ontem e o hoje. “Nem a memória individual nem a coletiva são fotografias do que realmente aconteceu. Elas são reconstruções”, já dizia o filósofo italiano Umberto Eco (1932-2016). Segundo a turma que encabeçou a pesquisa, as pessoas tendem a absorver uma quantidade maior de informações negativas sobre o que acontece ao seu redor, sobretudo quando a situação envolve desconhecidos — algo que intitularam de “exposição tendenciosa”. Com o passado, o movimento é justamente oposto, já que o cérebro possui rara capacidade de apagar aquilo que não é bom. O saldo desses dois movimentos sincronizados é, de um lado, um pessimismo em relação ao aqui e agora e, de outro, uma romantização de tempos que não voltam mais. “Com o correr dos anos, os acontecimentos ruins são amenizados, e o mal vai perdendo a maldade mais rapidamente do que o bem perde a bondade no imaginário das pessoas”, explicou a VEJA o psicólogo Adam Mastroianni, coordenador do estudo.
Quando se afirma que a sociedade se ancorava sobre pilares de mais elevada grandeza, se passa ao largo de episódios sombrios que abriram doloridas feridas, como ditaduras sangrentas e as duas guerras mundiais que ceifaram a vida de milhões, assim como se ignoram relevantes avanços civilizatórios, entre eles a louvável conquista de direitos pelas mulheres. Isso tudo parece meio nebuloso para a técnica de enfermagem aposentada Terezinha Ribeiro, 81 anos, integrante do grupo que acredita que a modernidade tirou tudo dos conformes e gerou mais problemas do que soluções. “Está uma bagunça, ninguém se respeita, e as novas gerações têm uma educação ruim, só aprendem comportamentos errados”, opina Terezinha, dando voz a toda uma ala que tenta encontrar refúgio nas mais diversas bolhas, onde compartilha da mesma opinião que outros. A dela é a igreja.
Os estudiosos alertam para uma confusão muito comum entre os nostálgicos. “Uma parte acaba achando que o passado era melhor, quando na verdade o que ocorre é que, naquele tempo, a pessoa era mais feliz e confunde sua vivência pessoal com o contexto social maior”, afirma o psicanalista Christian Dunker. Ao observar sua ampla amostra com lupa, a pesquisa americana constatou ainda que, entre os que se revelavam conservadores, a ideia de que o tempo presente é “menos ético” se sobressaía com tintas mais gritantes. Isso tem a ver com o elo que esse grupo faz entre o avanço de pautas progressistas, como a descriminalização das drogas e do aborto, e a suposta crise moral. “Se um conjunto de valores é questionado, não significa que a sociedade perdeu o norte, mas que está imbuída do saudável exercício de repensar o que faz sentido”, enfatiza a socióloga Raquel Weiss, da USP.
“Pensamos raras vezes no que temos, mas sempre no que nos faz falta.”
Não é sempre que o sentimento de nostalgia traz angústia e descontentamento. Há uma face dele que é proveitosa aos indivíduos, como ressalta um levantamento conduzido pelas universidades de Southampton, na Inglaterra, e de Zhejiang, na China, com quase 4 000 voluntários. Para eles, as lembranças aumentavam a sensação de felicidade e diminuíam a de solidão. A mesma pesquisa aponta que o saudosismo, visto sob seu ângulo positivo, preencheu corações e mentes no árido período de isolamento pandêmico. A onda nostálgica também dita comportamentos que, em si, não trazem nenhum mal. A toda hora, a jovem geração Z escolhe uma década em que se inspirar, resgatando pochetes, cores vibrantes, câmeras analógicas, discos de vinil e até o inesquecível Atari. “Gosto de me abastecer de referências diferentes”, conta a estudante de geografia Deborah Costa, 21 anos, adepta de visual retrô. Ela não cai na armadilha de se enredar no passado sem apreciar o mundo de hoje, um embate existencial sobre o qual o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) escreveu: “Pensamos raras vezes no que temos, mas sempre no que nos falta”. Sábias palavras para os nostálgicos de plantão.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2023, edição nº 2850