Os perigos do Venvanse, droga em alta entre executivos e nas baladas
Medicamento recomendado para tratar certos males, vendido em farmácias, é adotado pelas novas gerações para um contraindicado uso recreativo
Embalados pela batida da música eletrônica, jovens às centenas se aglomeravam na pista do icônico Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em uma dessas concorridas festas da noite carioca. O bate-estaca que fazia tremer a pista e as onipresentes luzes coloridas que conferiam ao ambiente ritmo frenético, porém, não eram os únicos elementos a agitar aquele sábado. Na balada, acompanhada pela reportagem de VEJA, consumiam-se substâncias ilícitas sem cerimônia — entre elas, maconha, lança-perfume e MDMA. Mas avistava-se também uma droga menos conhecida, que gerava curiosidade e era ingerida por vários dos que ali estavam: o Venvanse, medicamento recomendado para tratar certos males, vendido inclusive em farmácias, que as novas gerações começam a adotar para um contraindicado uso recreativo. “Fico eufórico, extrovertido, danço a noite toda, mesmo estando exausto depois de um dia de trabalho. É como se a pílula te ressuscitasse”, conta R.S., um engenheiro de 26 anos que, como outros que concordaram em ser entrevistados, preferiu não se identificar.
A droga, produzida e comercializada no Brasil pela multinacional japonesa Takeda Pharma, é feita à base de dimesilato de lisdexanfetamina, derivado mais moderno da anfetamina. Sob prescrição médica, costuma ser recomendada como moderador de apetite em tratamentos contra a compulsão alimentar e também para elevar a concentração dos portadores de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, o TDAH. Nesses específicos casos, os benefícios obtidos compensam o risco, impresso na tarja preta da embalagem, onde a fabricante avisa: “O remédio pode causar dependência física ou psíquica”. O alerta não vem surtindo efeito na ala mais jovem, que vê no fato de as pílulas serem fabricadas pela indústria farmacêutica, e não num fundo de quintal, uma garantia de segurança. Estão enganados. “O MDMA bate mais forte para mim, mas acho mais confiável tomar Venvanse, por conhecer sua origem”, diz, em argumento que escamoteia os perigos contidos na droga, a estudante de economia B.E., 21 anos, assídua frequentadora de raves.
O uso recreativo tem impulsionado as vendas do medicamento a ponto de estar em falta em diversas farmácias do país, de onde desaparecem para abastecer um mercado ilegal muito fácil de acessar. Um levantamento do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos revela que o consumo de Venvanse duplicou nos últimos dois anos, chegando a 1,4 milhão de caixas comercializadas — movimento que repete a cena nos Estados Unidos, onde as vendas chegaram perto de 4 milhões de caixas em 2022. “A droga vem sendo mais utilizada justamente depois de ter sido descoberta como potencializadora do prazer imediato nos momentos de diversão, algo que a sociedade em que vivemos busca em alto grau”, analisa Renato Filev, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD). A Takeda Pharma, que rechaça veementemente qualquer uso que não os fins médicos aprovados pela Anvisa, enviou uma nota a VEJA em que atribui o avanço da pílula “à maior ocorrência de distúrbios psicológicos observados durante a pandemia”.
Os efeitos estimulantes do Venvanse são explicados pelo aumento dos níveis de duas substâncias no cérebro: a dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer e felicidade, e a noradrenalina, hormônio que deixa a pessoa mais ativa. Mas não se detectam impactos alucinógenos ou mudanças significativas na percepção da realidade, motivo pelo qual muita gente acaba misturando a pílula com outras substâncias. Uma das combinações mais frequentes se dá com o álcool, já que o Venvanse mantém a euforia e, ao mesmo tempo, inibe sonolência, tontura e alterações na fala, tão comuns após o consumo de bebida. “Fico ainda mais acordada e menos travada para interagir”, relata a estudante de medicina L.T., 19 anos. Depois de um curto período sem a presença da droga no organismo, no entanto, muitas vezes verifica-se o que os especialistas chamam de “rebote”. “Perda de energia, fraqueza, irritabilidade e dores de cabeça e no corpo costumam aparecer nos dias subsequentes à interrupção do uso”, lista Rodolfo Pipe, diretor clínico do Centro de Atenção Psicossocial de Garopaba, em Santa Catarina. No longo prazo, o constante consumo com doses acima do recomendado pode elevar as chances de problemas cardíacos e desencadear transtornos psíquicos, como ansiedade e depressão.
Antes de adentrar as baladas, um empurrão para o uso de Venvanse (também não indicado) começou a vir de uma turma de estudantes e profissionais do mercado financeiro, que tem por objetivo maximizar a performance em ambientes que exigem intermináveis horas de concentração. Quando ingressou em uma corretora de São Paulo, L.M., 25 anos, decidiu turbinar por conta própria a dosagem que o médico havia lhe prescrito tempos antes, para ajudar a minimizar os sintomas de seu diagnosticado déficit de atenção. Ele admite a atual dependência do comprimido, cujo efeito descreve como “doping intelectual”. “Se não uso a droga, não consigo me concentrar nem render como gostaria”, admite o jovem, que relata que inúmeros colegas recorrem ao Venvanse e, como eles, não raro ingere a pílula para encarar as longas noitadas paulistanas.
Obter o medicamento depende de uma receita médica especial, na cor amarela, que fica retida na drogaria, mas basta realizar uma busca simples pelas redes para ser direcionado a grupos de Telegram ou WhatsApp onde as cartelas de Venvanse são vendidas livremente, apesar de ser ilegal. Quem engatou no consumo conta que até farmacêuticos às vezes acabam fornecendo o comprimido sem o pedido médico e, assim, alimentam um mercado rentável — uma caixa com 28 cápsulas, que sai por 500 reais na farmácia, sobe para até 700 reais nas transações paralelas.
Ao sentir que a situação pode fugir ao controle, uma parcela dos chamados usuários recreativos tem dado um desejável passo atrás. Foi o que ocorreu com João Pedro Lobão, 22 anos, gestor na área de marketing digital, que tomou Venvanse pela primeira vez em um momento de grande ansiedade no qual planejava mudanças. Aos poucos, sem que percebesse, os comprimidos foram se tornando parte integrante de seu cotidiano. “Com eles, você aguenta o estresse e faz várias coisas simultaneamente”, conta Pedro, que chegou a tatuar a fórmula do remédio no braço. Com o tempo, porém, os efeitos foram se revelando deletérios. “Me tornei uma pessoa agressiva, brigava por quase nada e tive de parar”, lembra. Como acontece com outros adeptos ouvidos por VEJA, ele reconhece: “Se voltar a tomar, não tenho freios. Perdeu a graça”. Que o mau uso da droga seja sempre combatido em nome da verdadeira diversão.
Em nota, a Takeda Brasil, fabricante do Venvanse, informa que:
O dimesilato de lisdexanfetamina, princípio ativo do Venvanse, foi aprovado no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em julho de 2010, na condição de ‘Venda Sob Prescrição Médica’, sendo indicado para o tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) e do Transtorno de Compulsão Alimentar (TCA). O aumento das vendas observado recentemente é comum a todos os outros produtos farmacêuticos que integram essa classe terapêutica e está relacionado à pandemia de Covid-19, que teve efeitos importantes sobre toda a sociedade, em especial sobre os pacientes com diagnóstico de TDAH, particularmente vulneráveis ao estresse e às medidas de distanciamento social. É um equívoco, portanto, associar o crescimento da comercialização do Venvanse ao eventual uso recreativo. A disponibilidade comercial está normalizada desde o final de 2022.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2023, edição nº 2852