Você acha que ganhou. O Estado sabe que venceu
Todas as constituições republicanas aumentaram o poder estatal sobre a sociedade. Nenhuma ousou ir tão longe como a Carta de 1988, que completa três décadas
Não há mais escravos no Brasil!”, anunciou o deputado Joaquim Nabuco a cerca de 5 000 pessoas reunidas diante do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, em pleno domingo, 13 de maio de 1888, logo após a princesa Isabel assinar a Lei Áurea. O projeto, que encerrou mais de 300 anos de escravidão, tramitou em tempo recorde no Parlamento. Recebido numa terça-feira, a Câmara o aprovou na quinta, e o Senado, no mesmo domingo em que foi sancionado. A escravidão pôde ser extinta por lei em razão de uma omissão da Constituição de 1824, em vigor na época. Segundo seu artigo 178, a Carta cuidava apenas de dois temas: poderes políticos e direitos dos cidadãos. Como os escravos não eram considerados cidadãos, o texto não falava nem deles nem da escravidão. Por não ser matéria constitucional, havia espaço para extingui-la por lei.
Agora, imagine se a Carta outorgada por dom Pedro I adotasse a lógica detalhista e analítica da Constituição de 1988, que fala sobre quase tudo, até da utilização de radioisótopos. Como era a base do sistema econômico e social da época em que foi redigida, a escravidão, com certeza, estaria descrita e regulada em vários artigos. Se é que não mereceria um capítulo inteiro, posto que os escravos chegaram a representar 15% da população brasileira. Nesse caso, a abolição não poderia ser conquistada por lei, mas apenas por proposta de emenda constitucional (PEC). Já pensou uma PEC Áurea, que tramita lentamente, e exige o voto de 60% dos deputados e dos senadores em duas sessões em cada Casa? Em vez de cinco dias, a abolição da escravidão consumiria, no melhor cenário, seis meses, como a PEC do teto de gastos. Poderia, no entanto, levar cinco anos, feito a PEC que proibiu a reedição das medidas provisórias. Nesse ritmo, a República, proclamada dezenove meses depois da Lei Áurea, chegaria antes.
À medida que trocamos de Constituição, e foram sete ao longo da nossa história, as cartas se tornaram mais complexas, mais minuciosas e mais difíceis de modificar. Nenhuma saiu do forno mais complexa, minuciosa — e difícil de modificar — do que a Constituição de 1988, que completa trinta anos neste 5 de outubro. Países que adotam Constituição de perfil menos detalhista seguem um modelo institucional lastreado em princípios gerais. Sua Carta até possui regras rígidas, mas concentradas em um número restrito de assuntos. Com base nos princípios estabelecidos, os futuros representantes do Executivo e do Legislativo são investidos de um poder mais amplo para definir, via legislação infraconstitucional, até mesmo normas de grande repercussão.
Quer mudar alguma coisa? Faça uma PEC. Desde a sua promulgação, a Constituição, aprovada com 250 artigos, já recebeu 99 emendas
Nesses países, também o Judiciário, em particular a Corte Suprema, ganha o direito de agir com mais liberdade, podendo construir suas decisões segundo as mudanças de valores e de costumes ao longo do tempo. Os três Poderes ficam igualmente desprendidos para trabalhar. Tamanha liberdade confere autonomia aos dirigentes do país, e transfere responsabilidade aos eleitores, dado o poder que estão entregando aos políticos. Cartas mais pormenorizadas seguem outro fundamento. Não deixam nada para amanhã. Em vez de rigidez sobre um número contido de temas, estendem o rigor a uma multiplicidade de assuntos. Guiam-se pela descrença profunda na capacidade das futuras gerações de interpretar seus princípios.
A essa escola pertence a Carta dos radioisótopos de 1988. Por apontar como sua principal característica a ampla distribuição de direitos e garantias individuais, o presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães, batizou a Constituição de “cidadã”. Considerado o cerceamento à ação dos governantes das décadas seguintes, o texto talvez merecesse um apelido menos generoso: “Constituição desconfiada”. Imagine quantos mandamentos, além dos dez, Deus entregaria a Moisés se confiasse em sua capacidade interpretativa tanto quanto os constituintes de 1988 nos futuros governantes brasileiros.
Segundo um trabalho intitulado Comparative Constitutions Project, sobre as constituições de 180 países, desenvolvido por professores universitários americanos, o tamanho médio das cartas é de 19 700 palavras, algo como quarenta páginas de VEJA. A brasileira aparece em terceiro lugar no ranking, com 64 488 palavras. É oito vezes maior que a americana, treze vezes maior que a japonesa. Perde apenas para a indiana (146 385 palavras) e para a nigeriana (66 263). Alguém poderá dizer que a extensão do texto é fruto do seu tempo. Mas, consideradas as outras 22 cartas escritas na década de 80, a brasileira é 2,5 vezes maior — e também bem acima da média das 105 que vieram depois. A da Tailândia, a última Constituição analisada nesse estudo, é de 2014, e tem 7 600 palavras.
Nosso gigantismo constitucional não aconteceu por descuido, como se os deputados e senadores que escreveram a Carta tivessem se atrapalhado durante os trabalhos da Assembleia Constituinte e, quando se deram conta, já haviam redigido texto demais. Quem acompanha pela televisão uma votação do Supremo Tribunal Federal sempre fica com a impressão de que os ministros falam por horas o que poderiam resumir em minutos. Os votos são visivelmente prolixos. Não é o caso da Constituição. Os constituintes precisavam de muitas palavras porque só assim poderiam planificar, esmiuçadamente, o funcionamento do país e do Estado — e impedir, descaradamente, que a legislação ordinária tivesse poder de operar transformações significativas.
O resultado é conhecido. Quer mudar alguma coisa? Faça uma PEC. Desde sua promulgação, a Constituição, aprovada com 250 artigos, já recebeu 99 emendas. Existem mais de 1 000 PECs tramitando no Congresso, 439 apresentadas nesta legislatura. Sabe-se lá quantas outras o novo presidente vai propor a partir do ano que vem para concretizar suas promessas de campanha. Se governar já foi abrir estradas, então passou a ser emendar a Constituição. As PECs são necessárias para enfrentar temas sérios, como o desequilíbrio previdenciário, o caos tributário, a desordem federativa, a desorganização da segurança pública e a falência da estrutura político-partidária. Mas já foram usadas para resolver assuntos cotidianos, como a criação do plano de carreira dos agentes de saúde, a ampliação do número de Tribunais Regionais Federais, a permissão para a admissão de estrangeiros nas universidades, e a liberação de tributos para LPs, CDs, DVDs e blu-rays de autores nacionais. Tudo decidido via PEC.
Esse desenho constitucional criou uma trava dupla ao trabalho do Executivo e do Legislativo. Primeiro porque, se coisa séria (e até coisa não tão séria) pede PEC, o mais tradicional instrumento legislativo, o projeto de lei, acaba virando produto de segunda classe. Depois porque os constituintes travaram o Orçamento Geral da União de um jeito que nenhuma Carta anterior havia feito. Base da gestão pública, a peça orçamentária deveria ser discutida com mais liberdade pelos dois poderes eleitos para administrar o país. Acontece que a Constituição Desconfiada de 1988 carimbou quase tudo. Somados as vinculações e os gastos obrigatórios, constitucionais ou legais, 95% do dinheiro público tem destino predefinido. Quer mexer com isso? Tome PEC.
Há um dado sobre a trava constitucional que é bem visível no trigésimo aniversário da Constituição, mas não no momento em que ela foi escrita. O bote dos constituintes no Executivo e no Legislativo não se repetiu no Judiciário, que manteve intocada a autoridade que tinha antes. O que isso provocou? Juízes passaram a mandar mais do que políticos. Sendo mais exato, os políticos passaram a mandar menos do que os juízes. Ainda que o artigo 2º da Carta fale em independência e harmonia entre os poderes, o bote parcial gerou um sistema desbalanceado. O Judiciário é livre para agir. O Ministério Público também. O Executivo e o Legislativo, não. Naquele tempo, com tribunais mais conservadores, o efeito não apareceu. Quando o ativismo passou a se expressar nas cortes, principalmente com as nomeações feitas nos governos Lula e Dilma, o desequilíbrio emergiu, tanto nas jurisprudências quanto na vida nacional.
Cidadã nos direitos, desconfiada dos políticos e reverente aos juízes, promotores e procuradores — assim saiu a Constituição. São conhecidas as críticas feitas à Carta por construir um texto visivelmente parlamentarista para, no fim, adotar o presidencialismo. Entendem os estudiosos que parte do nosso desajuste se deve a essa esquizofrenia. Mas puxar o freio do Executivo e do Legislativo e manter a alçada apenas do Judiciário e do Ministério Público introduziu no nosso ordenamento um sistema híbrido que está na raiz de alguns de nossos graves problemas.
Ainda que já estivéssemos livres do autoritarismo, os autores da Carta queriam matar qualquer fantasma. Daí o capítulo dos direitos sociais
O governo estadual decide que o hospital planejado para a cidade A faz mais sentido na cidade B. Discordando da decisão, o promotor ingressa com uma ação civil pública e consegue do juiz uma liminar impondo a retomada do projeto original. A prefeitura resolve aumentar a tarifa de ônibus. Acionada pela procuradoria, a Justiça suspende o reajuste e determina a realização de uma auditoria para verificar a necessidade do aumento. O governo federal licita uma obra, mas o Ministério Público Federal identifica problemas. Entra na Justiça, suspende a concorrência, e o projeto fica no limbo por meses ou anos. Os três casos são teóricos, mas suas versões não ficcionais se repetem a todo instante no Brasil. Provocado pelo Ministério Público, o Judiciário tem proferido sentenças que muitas vezes se confundem com a realização de políticas públicas.
Há juízes mandando construir escola, ordenando levantar penitenciária, parando estradas, determinando reajustes salariais, agindo como se fossem governantes eleitos. Critica-se o Executivo quando abusa das medidas provisórias e toma para si a tarefa de fazer leis, que é própria do Poder Legislativo. Em muitas de suas manifestações, o Judiciário faz o mesmo, atuando como parte do Executivo. O comportamento se repete em relação ao Legislativo, quando um juiz entende que, mais do que garantir a aplicação das leis, tem o direito constitucional de reescrevê-las.
O Judiciário funciona assim em parte porque olha para o Supremo Tribunal Federal e vê que ele também funciona assim, assumindo com frequência as competências dos outros poderes. Em vez de realizarem uma leitura regular da Carta, o que já seria desafiador pelo volume de demandas que recebem, os ministros do STF têm adotado como solução dos conflitos formas variadas de interpretação. E que, não raro, se chocam umas com as outras. Quando a decisão é monocrática, sai uma coisa. Na turma, pode sair outra. E, no plenário, algo diferente das outras duas.
Em palestra proferida há alguns anos, o atual presidente do STF, José Antonio Dias Toffoli, comparou o papel da Corte ao do Poder Moderador. Vale lembrar que, na Constituição de 1824, o Poder Moderador cabia ao imperador, que era “a chave de toda a organização política” (artigo 98), “não sujeito a responsabilidade alguma” (artigo 99). “Os constituintes perceberam que não bastava criar direitos e garantias. Era preciso definir também quem iria garantir esses direitos”, afirmou Toffoli na sua palestra. Num primeiro momento, disse o ministro, os constituintes deram força ao Ministério Público, mas “esqueceram que o MP só postula, não decide”. E assim cresceu o STF. “Hoje ele é o poder moderador, é o que tira a sociedade de seus impasses.”
Esse desbalanceamento provoca muita discussão. Na opinião de um ministro do STF, “o ativismo associado a esse comportamento tem raiz na Constituição, mas é também resultado da politização que tomou conta da magistratura”. Para um ministro do Tribunal de Contas da União, a distorção decorre de uma opção do constituinte. “Ele carregou a Constituição com direitos, e jogou para o Judiciário a tarefa de frustrar a sociedade no exercício dos seus direitos, em nome da responsabilidade fiscal. Os juízes decidiram levar a Carta a sério, e a confusão está instalada”, afirma. Já segundo um ex-ministro do STF, o constituinte apostou “na tradição conservadora da Corte, na postura inercial e na falta de audácia do Judiciário, que jamais se atreveria a flexibilizar a Carta, muito menos a reescrevê-la. Doce ilusão”.
Uma explicação recorrente para o ativismo judiciário e a judicialização generalizada das atividades do poder público tem sido a conhecida omissão do Congresso em suprir as lacunas da legislação. Trata-se de um fato inquestionável, mas a origem do problema está na Constituição. É que, além de cidadã, desconfiada e reverente, ela é dúbia. Propositadamente dúbia, criando espaço para a ação do Judiciário. Nelson Jobim, ex-ministro da Defesa e ex-ministro do STF, foi deputado constituinte. Em depoimento ao jornalista Luiz Maklouf, autor do livro 1988: Segredos da Constituinte, citou um exemplo acabado de dubiedade, contido na redação do trecho que estabelece o descanso semanal do trabalhador. “A esquerda queria repouso semanal remunerado obrigatoriamente aos domingos. A direita queria repouso semanal remunerado, na forma de convenção ou contrato coletivo de trabalho”, afirma Jobim. “Então fiz uma redação, aprovada pela direita e pela esquerda. Não era obrigatório, era preferencial. Todo mundo aprovou.” Preferencial, como se sabe, não quer dizer nada. E, por não querer dizer nada, nasceu o inciso XV do artigo 7º.
Outro caso citado no livro de Maklouf. Havia um grupo querendo proibir a publicidade de cigarro, bebidas alcoólicas e medicamentos. E outro trabalhando para mantê-la liberada. O que fizeram os constituintes? Um texto dizendo que a propaganda “estará sujeita a restrições legais”. Proibiram? Não. Mantiveram? Também não. Empurraram o problema com a barriga. Essa saída foi recorrente. O debate na Assembleia Constituinte caminhava para um impasse, com alas defendendo pontos conflitantes? Redigia-se um artigo genérico, acompanhado da informação de que o assunto seria definido “na forma da lei”.
A expressão aparece 65 vezes na Constituição. “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.” “São gratuitas as ações de habeas-corpus e habeas data, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania.” “Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União.” A futura lei, quando tramitasse, poderia ir para um lado ou para outro, conforme o lobby vencedor no momento de sua aprovação. Os conflitos foram adiados durante os trabalhos da Constituinte, mas reapareceram nas demandas judiciais e ações civis públicas construídas nos espaços de ambiguidade.
A melhor Carta constitucional sempre é a que consegue deixar tudo bem claro, límpido como a nascente de um rio. A segunda melhor é a que se consegue promulgar, ainda que turva. E sem as dubiedades, aparentemente, não chegaríamos a bom termo. Conforme a Assembleia Constituinte avançava, e foram vinte meses de trabalho, as forças políticas brigavam e se compunham em clima que muitas vezes lembrava o de um diretório estudantil. Maioria e minorias trombavam pela imprensa, mas nos bastidores selavam um acordão para garantir espaço a todos. “Jamais conseguiríamos formar maioria e escrever uma Constituição sem recorrer ao texto ambíguo, que o tempo trataria de decantar e esclarecer”, afirma Nelson Jobim.
Para entender melhor as opções — e as distorções — da nossa Lei Maior, convém fazer uma breve viagem no tempo. O objetivo é capturar o ambiente econômico, social e político em que a Carta foi escrita. Comparado ao Brasil de hoje, aquele de três décadas atrás era visivelmente pobre. Nossa renda per capita correspondia a um quarto da atual. Sabe que países estão nesse patamar hoje? O Congo e o Sudão. O produto interno bruto representava um sexto do de agora, equivalente à economia da Colômbia. A safra anual de grãos daquele tempo era um quarto da registrada em 2017. A exportação, um oitavo.
Nos últimos trinta anos, a qualidade de vida melhorou significativamente. A fatia da população em situação de pobreza extrema foi reduzida à metade, a taxa de analfabetismo caiu dois terços, a mortalidade infantil três quartos, e a proporção de crianças fora da escola reduziu-se 90%. Em cada grupo de 100 habitantes havia dez carros e nove telefones, todos fixos. Hoje, essa centena de pessoas reúne vinte carros e 112 telefones, entre fixos e celulares. Vivíamos numa bolha, isolados do mundo. Os países mais avançados já tinham TV a cabo. Aqui, não. No exterior, os carros saíam da fábrica com retrovisor direito, airbag e cinto de três pontas. Aqui, não. Computador pessoal de qualidade só tinha quem contrabandeasse, porque a lei de informática proibia. Cartão de crédito internacional? Esquece. Era proibido. Quem viajava ao exterior era obrigado a levar dinheiro vivo ou cheque de viagem.
Além de pobre, o Brasil era estatizado e economicamente desajustado. Tínhamos 268 estatais, o dobro de hoje. Das 500 maiores companhias não financeiras do país, oitenta pertenciam ao governo. Quase todos os estados possuíam bancos, quebrados. A inflação anual, uma praga daquele tempo, era noventa vezes superior à atual. Noventa! Em 1987, quando os constituintes se sentaram para trabalhar, o primeiro plano de combate à inflação já havia fracassado, o segundo rumava para a mesma direção. Os salários estavam congelados; os preços, monitorados. Os empresários protelavam os investimentos. O governo estava no terceiro ministro da Fazenda, e um quarto seria nomeado dali a poucos meses. A situação era tão ruim que o Palácio do Planalto anunciou a suspensão unilateral, por prazo indeterminado, do pagamento dos juros da dívida externa. Com a moratória, o crédito internacional sumiu, o custo da dívida explodiu, e o país mergulhou numa crise que durou anos.
Para completar, o clima político pós-regime militar era de certa forma inquietante. Em 1987, completavam-se 27 anos da última eleição direta para presidente, ocorrida em 1960, três anos da derrota de uma emenda constitucional que pretendia restabelecer a eleição direta, e dois anos da morte de Tancredo Neves, eleito pelo extinto Colégio Eleitoral. Pela sexta vez na história, a Presidência da República seria exercida por um vice, a primeira por toda a extensão do mandato do titular. Embora já não comandassem o país, os generais acompanhavam com atenção o trabalho dos constituintes. E, em algumas ocasiões, fizeram seu lobby. Por exemplo, para impedir o fim do Serviço Nacional de Informações, surgido em 1964, e que seria extinto no governo Collor, ou para adiar a criação do Ministério da Defesa, mantendo as pastas militares divididas por armas. A fusão só ocorreu no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Tudo tenso e instável como nossa trajetória. Em 229 anos, os Estados Unidos tiveram 45 presidentes. Em 129 anos de República, o Brasil teve 43. Destes, 25 não foram eleitos diretamente. Dos dezoito eleitos diretamente, apenas dez concluíram o mandato. Jamais emplacamos quatro presidentes eleitos em seguida, numa sequência em que todos terminassem o mandato. Nossa história encadeia momentos de poderes quase absolutos: do imperador, das oligarquias na República Velha, da ditadura Vargas, por último do regime militar. Ainda que já estivéssemos livres do autoritarismo, os autores da Carta queriam matar qualquer fantasma. Daí a trava ao Executivo e ao Legislativo. Daí também a origem da Constituição detalhista, sobretudo no campo dos direitos e conquistas. Parecia necessário promover avanços adiados por uma história marcada por intervenções e abusos.
É isso que explica o capítulo dos direitos sociais. É difícil pensar numa Carta mais inclusiva. Na versão original, o artigo 6º lista nove direitos sociais que passariam a vigorar após a promulgação: além da saúde, educação, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, e assistência aos desamparados. Emendas constitucionais aprovadas posteriormente fecharam espaços de exclusão remanescentes. Em 2000, uma emenda incluiu a moradia. Em 2010, outra emenda adicionou a alimentação. E, em 2015, acrescentou-se o transporte, totalizando doze direitos sociais. Com todos os defeitos e limitações, deve-se à Constituição a existência de um sistema de saúde verdadeiramente amplo, a única possibilidade de atendimento para 75% dos brasileiros. Foi ela que estabeleceu a universalização dos serviços não apenas aos que contribuem para a Previdência, como anteriormente.
Por mais que pareça romântico acreditar que direitos reais surgem a partir da decisão de reuni-los no papel — e é —, na visão dos constituintes ao menos os compromissos estariam estabelecidos. Ainda que as provas internacionais de avaliação mostrem o grau do nosso compromisso com a educação, ainda que o número de assassinatos evidencie o nível do nosso compromisso com a segurança e ainda que as contas públicas deixem claro que a Previdência está falida, a Carta nos dá esses e outros tantos direitos. Os constituintes acharam que valeria a pena também fazer constar do texto final direitos já previstos na legislação infraconstitucional, mas que receberiam uma proteção extra ao serem constitucionalizados. Acabaram entrando ainda direitos poéticos, como o artigo 230, que protege o idoso nos seguinte termos: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”. Na prática, não quer dizer nada, como vários outros trechos.
A Constituição de 1988, disse Ulysses Guimarães no discurso de encerramento dos trabalhos da Assembleia Constituinte, “introduziu o homem no Estado, fazendo-o credor de direitos e serviços”. É difícil pensar numa forma mais positiva para traduzir o trabalho feito. Faltou explicar à sociedade que a Carta introduziria ainda mais o Estado na vida do homem, obrigando-o a pagar contas cada vez mais altas. A cada direito social listado corresponde um tributo ou uma contribuição adicional. Naquela época, os constituintes estavam mais preocupados em bater bumbo com a obra do que em fazer contas.
A Carta mais longeva da nossa história é a de 1824, que vigeu por 65 anos. Em 3 de maio de 1823, dom Pedro I chegou a fazer um discurso histórico para abrir os trabalhos da Assembleia Constituinte. “Afinal raiou o grande Dia para este vasto Império, que fará época na sua história. Está junta a Assembleia para constituir a Nação. Que prazer! Que fortuna para todos nós!”, anunciou. Seis meses depois, quando percebeu que a futura Carta Magna imporia limites ao seu poder, dissolveu a Constituinte e prendeu parlamentares, alguns dos quais terminaram deportados. O texto acabou sendo outorgado, após as adaptações encomendadas pelo imperador a pessoas da sua confiança.
A segunda mais longeva é a Carta de 1891, que existiu por 43 anos. Quando foi escrita, no início da República, desenhou um modelo de Estado que consumia em impostos o correspondente a 10% do PIB. Os efeitos tributários da Constituição atual, a terceira mais duradoura, faz essa mordida parecer um sonho. Em 1987, a carga tributária girava em torno de 22% do PIB. Três anos após a promulgação da Carta, 28%. Atualmente, 37%. Os constituintes prometeram uma Carta que protegesse a sociedade do Estado, proporcionasse o bem-estar de todos e servisse de base institucional ao crescimento do país. Acabaram entregando uma peça que, infelizmente, patrocinou o crescimento do Estado e fortaleceu o bem-estar das corporações. Não obstante sua faceta “cidadã”, foi vítima de seu perfil “desconfiado”, “reverente” e “dúbio”.
O Estado é o grande beneficiário das nossas constituições republicanas. A de 1891, reformada em 1926, hipertrofiou o Executivo. A de 1934, que durou apenas três anos, ampliou os poderes da União e criou órgãos consultivos que encareceram a administração pública. A Carta de 1937 outorgou um poder absoluto a Getúlio Vargas. Em 1946, promulgamos uma Constituição que, apesar de vários méritos, aumentou o Estado e criou uma fonte de tensão com a possibilidade de eleições separadas do presidente e do vice por partidos diferentes. A Carta de 1967, feita pelo regime militar, engordou ainda mais o poder da União, permitiu a aprovação de projetos de lei por decurso de prazo e impediu a rejeição da lei orçamentária. De todas, a que mais fez crescer o Estado foi justamente a atual. Um Estado maior, mais burocrático e mais travado do que antes, quase um fim em si mesmo. Não podemos esperar novos aniversários para desmontar essa cilada. Como? Por meio delas, as PECs.
* Eduardo Oinegue é jornalista, consultor de empresas, palestrante e colunista do Grupo Bandeirantes de Rádio e Televisão
Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2018, edição nº 2602