O americano Travis Rupp não tem os atributos físicos, nem o providencial chicote de Indiana Jones. Mas, assim como o personagem interpretado por Harrison Ford no cinema, ele encara aventuras em uma área instigante da arqueologia: o estudo das relações da humanidade com a cerveja. Professor da Universidade do Colorado em Boulder, onde ensina história e arqueologia romana, egípcia e grega, Rupp transformou um hobby que cultivava desde a juventude ao lado do pai — a produção artesanal da bebida — em campo de pesquisa científica. Desde 2016, viaja o mundo em busca de evidências da produção da cerveja por antigas civilizações, e devota-se à missão de reproduzir o modo como era elaborada por diferentes povos.
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Rupp já foi parar em um mosteiro na região italiana da Úmbria, onde aprendeu como os monges faziam sua bebida há mais de um milênio. Outra vez, causou rebuliço ao pedir aos colegas que mastigassem o milho que seria utilizado no processo de fermentação de uma receita peruana primitiva. A primeira aventura do “arqueólogo da cerveja” — termo cunhado por ele próprio — foi recriar uma iguaria etílica do fim da Idade do Bronze na Grécia Antiga. A lista que se seguiu inclui geladas ancestrais consumidas por egípcios, hebreus — e até vikings. “Como acadêmico, você está sempre procurando aquela pedra que ainda não foi virada, e foi mais ou menos isso que eu achei”, disse Rupp a VEJA.
Aos 42 anos, Rupp é um cervejeiro assumido e hoje celebrado no meio. O interesse por seu campo de pesquisa, contudo, vai além da mera curiosidade sobre um tema inevitavelmente relacionado à diversão. Descobertas realizadas nos últimos anos confirmam que a cerveja foi a primeira bebida alcoólica desenvolvida pelo homem. Por um tempo, a pista mais antiga de sua produção vinha do leste da Turquia, datando de cerca de 11 000 anos atrás. Mais recentemente, em 2018, foi descoberta em uma caverna no norte de Israel uma cervejaria com idade de 13 000 anos. Como ressalta Rupp, isso coloca a cerveja em um patamar de antiguidade bem superior ao do vinho, cujas reminiscências mais remotas remontam a 6 500 anos antes de Cristo. E os achados não param por aí: em 2021, foi encontrada uma cervejaria de mais de 5 000 anos no Egito, o que sugere uma produção em escala já naquela época. “É razoável pensar que a cerveja pode ter dado origem a uma das indústrias pioneiras do Egito”, afirma Rupp.
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Ao longo dos séculos, o hábito de brindar com uma boa birra teve implicações culturais. Referências literárias das culturas mesopotâmicas mostram a cerveja como bebida de todas as classes sociais. No Egito, era vista como o presente perfeito para oferecer a reis e deuses. Já na Roma Antiga, tinha má fama: a “bebida bárbara” se restringia à margem da sociedade. Essa visão é mais ou menos persistente até hoje, pois o vinho continua associado aos ricos e a cerveja, à classe trabalhadora. De qualquer maneira, no balcão de um boteco ou no churrasco entre amigos, a cerveja tem o dom de eliminar a distância entre as pessoas. Em escala global, trata-se de uma bebida imbatível: só no Brasil, foram mais de 13 bilhões de litros consumidos em 2021.
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Nos primórdios, a cerveja não era apenas um recurso para ficar alegre e soltinho, mas uma forma de sustento, visto que possui seus nutrientes. Na Idade Média, com surtos de cólera e outras doenças, podia ser mais seguro beber cerveja que água. O álcool e o processo de fermentação reduziam riscos de contaminação. A popularização da cerveja nesse período também se deve à Igreja Católica, que primeiro a estigmatizou, para depois abraçá-la. “Quando o cristianismo se formou em Roma, o vinho era um símbolo de conversão através do sangue de Cristo, mas associava-se a cerveja à barbárie e ao paganismo”, diz Rupp. “Isso durou alguns séculos. Até que Santa Brígida, que viveu em uma região da Irlanda sem cultivo de uva, começou a produzir cerveja para o povo, despertando uma tradição.” Não é difícil entender por que a bebida fascina a humanidade desde então. “Somos um animal social, e a cerveja, assim como outras comidas e bebidas, tornou-se parte do nosso ser.” Um brinde a essa invenção fabulosa.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782
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