Reza o Deus Baco que a escalada rumo ao Olimpo dos vinhos começa com os rótulos mais baratos e simples – marco inicial para os consumidores prepararem o paladar para produtos melhores e mais complexos. No Brasil, a caminhada mais firme com produtos importados começou com o consumo de um peculiar rótulo europeu. Ele reinou por aqui durante décadas e o sabor dessa experiência divide quem teve a oportunidade de brindar com ele.
Para alguns, o negócio traz um sabor nostálgico dos tempos em que o grande carro nacional era o Opala Diplomata, dos blazers com ombreiras e de marcas de perfume como o Opium da YSL. Por outro lado, vários ficaram traumatizados depois de exagerar na harmonização de muitas taças dessa bebida com cascatas de camarões — receita certeira para uma grande e inesquecível ressaca. Estamos falando aqui da geração Liebfraumilch, a do célebre vinho alemão de garrafa azul.
Na década de 70, o produto desembarcou por aqui e, na ausência de qualquer outra grande referência de qualidade, logo a bebida de sabor adocicado e teor alcoólico na casa dos 10% virou uma febre. O blend era feito de uvas brancas, incluindo a Riesling. Muitos consumidores tinham dificuldade para pronunciar Liebfraulmich (leite da mulher amada, em tradução livre para o português), então logo pediam nos restaurantes e bares o “vinho da garrafinha azul”. O colorido vasilhame também se destacava nas prateleiras de supermercados e dos empórios. Não havia festa, casamento e lançamento de livros sem a presença dele.
Era tamanho o sucesso que durante muitos anos o rótulo chegou a representar mais da metade das importações de vinhos para o mercado brasileiro. O responsável por trazer o produto para cá foi Otávio Piva de Albuquerque. “Selecionei o rótulo numa viagem a Alemanha e apostei no sucesso dele, pois sabia que o público gostava de bebidas de sabor doce”, relembrou ele à coluna AL VINO. “O Liebfraulmich acabou virando porta de entrada aos brasileiros para o mundo dos vinhos.” Segundo Otávio Piva, curiosamente, a cor original da garrafa era marrom. “Fui eu que pedi a mudança para azul”, conta.
ASCENSÃO E QUEDA
O Liebfraumilch reinou até o final dos anos 90. À medida em que o mercado brasileiro foi se abrindo, os bebedores deixaram de lado a garrafinha azul. “Era uma onda no começo, mas depois virou sinônimo de coisa brega”, lamenta Otávio Piva. Quem sobreviveu à coqueluche descobriu mais tarde que há ótimos rótulos feitos com a Riesling, uva cujo berço de origem é a região do Reno na Alemanha. Ela é matéria-prima de grandes vinhos brancos aromáticos, frescos e elegantes, incluindo espumantes.
Otávio Piva, o “pai do Liebfraulmich”, criou também a Expand, que se tornou a maior importadora de vinhos do Brasil, mas o negócio fechou as portas no início dos anos 2000. Hoje, o empresário investe num ramo muito diferente: ele se autodefine como missionário e toca uma companhia de turismo especializada em organizar peregrinações religiosas pela Europa.
Tão onipresente por aqui há algumas décadas, o Liebfraumilch acaba sendo lembrado hoje mais como um modismo da pré-história do consumo brasileiro de vinhos. Atualmente é até um pouco difícil de encontrar o produto, mas uma busca por sites especializados pode abreviar a busca.
Alguém se arrisca?