Fernão Lara Mesquita (publicado no Vespeiro)
A chave para o entendimento do sistema institucional americano é a distinção que eles fazem entre “direito negativo” e “direito positivo”.
“Direito negativo” é o de não ser submetido à ação coercitiva de outra pessoa ou do governo. Eles o têm por um direito natural, também dito de primeira geração. Nasce com e pertence a todas as pessoas, e está garantido enquanto ninguém agir para violá-lo. A common law, o direito baseado na tradição que foi comum a toda a Europa, mas só sobreviveu na Inglaterra depois do advento do absolutismo monárquico que o nosso “direito romano”, foi inventado para sustentar, fixa os círculos do espaço individual que as pessoas naturalmente sabem que não devem invadir: o do corpo, o do lar, o dos pertences, o da propriedade. Essa é a base do “direito negativo”. E desses círculos decorrem os seus desdobramentos civis e políticos, ditos de segunda geração, o direito à vida, à liberdade de expressão, à liberdade religiosa, à legítima defesa, ao habeas corpus, a um julgamento justo, etc.
Já os “direitos positivos”, ditos de terceira geração, são os que requerem a ação de uma terceira pessoa para serem exercidos por quem vai desfrutá-los. Enquanto um “direito negativo” proíbe alguém ou o governo de agir contra o seu beneficiário, um “direito positivo” obriga outras pessoas ou o governo a agirem em benefício do seu detentor. Incluem-se nesse departamento os direitos sociais e culturais, tais como à comida, à habitação, à educação, a um emprego, à saúde, à seguridade social, ao acesso à internet ou o que mais se quiser incluir na lista, que, no Brasil, por exemplo, é infindável.
Lá, a Constituição da União, elaborada pelos “pais fundadores” iluministas, contempla exclusivamente os “direitos negativos”, o que, na medida em que ela subordina todas as outras leis, estabelece a prevalência destes sobre os “direitos positivos”. Diz, no preâmbulo, que todo o poder emana do povo, que o delega aos seus representantes eleitos por sufrágio universal e define nos seus sete artigos, pela ordem, o Congresso dos representantes do povo, a Presidência, o Judiciário, as relações entre os Estados e deles com a União e as regras para emendar a Constituição. As emendas da 1.ª à 8.ª garantem os já citados direitos de segunda geração que decorrem dos círculos de inviolabilidade do indivíduo. A 9.ª e a 10.ª (para encerrar a disputa de egos entre os convencionais de 1787, que queriam cada um enfiar um direito a mais) declaram que tudo o que não está formalmente proibido até ali “são direitos que pertencem ao povo ou aos Estados“. Todos os temas da alçada do “direito positivo” que recheiam de ponta a ponta a nossa Constituição federal lá ficam, portanto, restritos às Constituições estaduais e municipais.
E aí vem o pulo do gato.
Como todo “direito positivo” (artificialmente criado) implica uma violação do “direito negativo” (inato, natural) de não ser coagido a nada nem ter o que é seu apropriado pelos outros, eles só podem ser criados, nos países de common law, por contrato, isto é, se todas as partes envolvidas concordarem com isso numa votação. E como cada “direito positivo” tem um custo, o projeto que o propõe tem de incluir obrigatoriamente o seu esquema de financiamento: qual será a despesa, quem arcará com ela, como e quando ela será paga.
Ou seja, não existe a hipótese de se fazer caridade com dinheiro alheio. Quem se dispuser a tanto deve usar o seu próprio.
Correndo em paralelo com a diferenciação entre “direito negativo” e “direito positivo” está o princípio do federalismo, a mais forte garantia em países de dimensão continental e ampla diversidade de situações de que o sistema estará sempre voltado para servir ao indivíduo e jamais poderá acumular poder suficiente para voltar-se contra ele. Cada instância de governo ─ a municipal, a estadual e a federal ─ é definida em função do seu grau de proximidade do indivíduo e deve ser absolutamente soberana até o limite do alcance dele. Tudo o que diz respeito a uma única comunidade ─ a escolha do seu modelo de governo, policiamento local, saneamento, vias públicas, educação, saúde, proteção contra incêndios, normas de comércio, etc. ─ deve ser decidido e custeado por ela própria e mais ninguém, respeitadas as linhas básicas da Constituição. Só o que envolver mais de uma comunidade ─ estradas, transporte intermunicipal, circulação de bens, repressão ao crime, sistema penal, etc. ─ deve ficar a cargo dos governos estaduais. E somente o que não pode ser resolvido por um único governo estadual fica a cargo da União.
Acrescenta-se finalmente à fórmula um sistema preciso de representação dos eleitores em cada uma dessas instâncias de governo, o que se consegue com eleições distritais puras, em que cada distrito elege apenas um representante. Tudo começa pela eleição do conselho que vai dirigir cada escola pública entre os moradores de cada bairro do país. E daí vai subindo para os municípios, para os Estados, para a União. Sempre com cada representante, com base no endereço, sabendo exatamente quem é cada um dos seus eleitores. Sempre com cada representado guardando o poder de manter ou não o seu representante até o fim do mandato (recall ou retomada de mandatos), de obrigá-lo a tratar dos assuntos que ele indicar (leis de iniciativa popular), de impedi-lo de impor-lhe o que quer que seja (referendo das leis vindas de cima), de afastar juízes lenientes ou enviesados (com eleições periódicas de retenção ou substituição de juízes).
Com essas liberdade e flexibilidade, aos poucos o sistema foi evoluindo segundo a necessidade e a preferência de cada comunidade. O bairro vota ─ sim ou não ─ um melhoramento da escola a ser pago com um aumento temporário só do seu IPTU; a cidade, a contratação de mais policiais ou a construção de um novo hospital mediante um aumento temporário da taxa local de comércio; o Estado, uma nova estrada a ser paga pelos seus usuários mediante pedágio…
E fez-se a luz… sempre na medida e no preço exatamente desejados.