Li nos jornais que, ao longo deste mês, frequentadores de bares em várias cidades do país vão escolher seus petiscos favoritos. No concurso, cada estabelecimento participante cria uma receita nova e quem a pede ao garçom tem o direito de votar. Nossa culinária de bar é muito inventiva, então podemos ter certeza: a disputa do prêmio, existente desde 2000, será acirrada.
Também me rendo, de vez em quando, a um tira-gosto. Meu marido e eu temos o costume de, voltando de nossas caminhadas pela cidade, fazer uma pausa para um aperitivo.
Cultivamos esse prazer do mesmo modo nas viagens, como em anos passados, provando as delícias do festival gastronômico de Tiradentes. Ou, de forma muito especial, em passeios por Portugal e Espanha, onde recordamos não ser um acaso termos aqui essa cultura de botequim. As “tapas” e “acepipes” da Península Ibérica se mesclaram em nossas terras a ingredientes locais, derivando em guloseimas cultuadas. E, deste lado do oceano, encontraram ainda a rainha absoluta de toda mesa de bar: a pimenta.
Originária das Américas e levada para a Europa nas naus e caravelas, foi melhorar além-mar os bolinhos de bacalhau e semelhantes. De lá, com o comércio de especiarias, ganhou o mundo. Do outro lado do globo, tornou-se um ingrediente imprescindível. Impossível pensar na comida asiática sem ela.
“ ‘Apimentar’ é o que fazemos para melhorar um relacionamento meio morno”
Metaforicamente, espalhou-se no imaginário cultural. Alguém pode ser “ardido feito pimenta”. Mas “apimentar” é o que fazemos para melhorar um relacionamento meio morno. Essa pluralidade de sentidos, que ora a faz boa, ora ruim, espelha, no idioma, um fato indiscutível: a pimenta é controversa.
A constatação faz minha mente dar um salto transatlântico e ir buscar, em versos cheios de contradições da poesia portuguesa, a explicação para o fascínio que ela causa mundo afora. Defino assim o que a pimenta faz: ela é um “fogo que arde sem se ver”, exatamente como o amor cantado por Camões.
A maioria das pessoas não aprecia sofrer as agruras do coração. Porém, mais cedo ou mais tarde, vai experimentar seus ardores — e percalços. A rima de amor com dor domina o cancioneiro popular porque, muitas vezes, essas emoções andam juntas. Com a pimenta se dá contraste semelhante. Assim como o sentimento cantado nos versos do poeta português, ela causa um “contentamento descontente”.
O que acontece em nosso corpo quando a consumimos ilustra isso. Os compostos da pimenta entram em ação assim que a provamos. Ainda na língua, uma substância chamada capsaicina gera uma espécie de alerta de perigo no cérebro, daí a sensação de calor e dor. Mas é também o composto que, com o tempo, faz o incômodo abrandar. “Tão contrário a si é o mesmo amor”, já dizia o soneto.
É certo que existem sempre apaixonados mais entregues do que outros. É o caso do agricultor americano que desenvolveu as variedades de pimenta mais fortes dos últimos anos, segundo o Guinness Book. Ed Currie contou em entrevistas que, ao experimentar crua a atual recordista, a Pepper X (que desbancou a Carolina Reaper, sua criação anterior), demorou seis horas para se recompor. Mas, no jantar, a comeu de novo. Gostar de pimenta é mesmo um “nunca contentar-se de contente”.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888