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Pão de linguiça

Chamado de tórtano ou casatiello na Itália, ele foi trazido e rebatizado no Brasil pelos imigrantes napolitanos que se instalaram em São Paulo

Por J.A. Dias Lopes 13 Maio 2019, 17h41
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  • No mesmo navio em que carregaram mar afora a receita da pizza, os imigrantes napolitanos que chegaram em São Paulo entre o final do século XIX e metade do século XX trouxeram a tòrtano (o acento é de pronúncia) ou casiatiello – e aqui o rebatizaram de pão ou rosca de linguiça. Nos últimos anos, porém, voltam a denominá-lo tòrtano, mas pronunciando tortâno.

    Trata-se de um pão grande, com um furo no centro e mais de 3 quilos de peso. Leva farinha de trigo, banha de porco (cerca de 100 gramas por quilo de farinha) e recheio de salame e mortadela, torresmo e no mínimo um tipo de queijo. No Brasil, optou-se pela simplificação: usou-se apenas linguiça calabresa, mais fácil de encontrar, e opcionalmente algum queijo.

    Em nome da autenticidade, vamos tratá-lo por tòrtano. Na Itália, a receita apresenta ligeiras diferenças com a do casatiello, em função do uso dos ingredientes. A mais importante é o modo de usar os ovos. São colocados crus e inteiros no casatiello; no tòrtano, vão cozidos e cortados em pedaços, distribuídos na massa junto com o salame e o queijo. Mas os napolitanos agora tendem a considerá-las preparações irmãs. Até a “Grande Enciclopedia Illustrata della Gastronomia” (Selezione dal Readers’s Digest, Milão, 2000) as julga “similares”. Há inúmeras variantes de tòrtano: familiares, locais e regionais. Mesmo na Itália, há quem troque o recheio de salame por presunto cozido e dadinhos de mortadela ou junte ambos os ingredientes.

    Em São Paulo, os imigrantes preparavam inicialmente o tòrtano com a mesma destinação da terra natal: para o almoço de Páscoa. Saboreavam-no na mais antiga e importante festa cristã, junto com a pastiera di grano – a torta doce recheada de ricotta, grãos de trigo integral e fruta cristalizada -, que continua a ser a principal sobremesa da comemoração. O formato de argola do tòrtano evoca a coroa de espinhos secos com a qual os romanos torturaram Jesus, enfiando-a brutalmente na cabeça da figura central do cristianismo, antes da sua crucificação.

    Mas a tradição pascal do tòrtano no Brasil, conforme relato de antigos ítalo-paulistanos, desapareceu com o passar dos anos. Vicente Raiola (1933-2014), neto de napolitanos, um dos donos da importadora de conservas alimentícias Irmãos Raiola, testemunhou o declínio. “Na minha família, por exemplo, deixou de existir há muito tempo”, contava.

    O tòrtano, porém, foi reintroduzido em São Paulo pelos Tarallo (Francesco, Giovanni, Speranza e Antônio), que chegaram na cidade em meados do século XX. Fizeram isso ao comercializá-lo pioneiramente, a partir de 1958, quando abriram a Pizzaria Speranza, atualmente com matriz na Rua 13 de Maio, 1004, no Bixiga, um dos bairros que receberam o maior número de imigrantes italianos – os outros foram o Brás, Mooca e Belenzinho. Principais mudanças feitas pelos Tarallo na receita original: novamente a troca do salame pela linguiça calabresa e o costume de prepará-lo o ano inteiro, não só para a Páscoa.

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    Apesar de até hoje manter a receita secreta, a ponto de ter sido a única da família não revelada no livro “Speranza 60 anos” (DBA Editora, São Paulo, 2018), a pizzaria acabou imitada pela concorrência. Mesmo assim, poucos fazem um tòrtano ítalo-paulistano tão bom. O truque dos Tarallo é assá-lo com a massa tradicional, ou seja, combinando farinha de trigo, fermento biológico, banha de porco, muita linguiça calabresa, queijos mozzarella, parmesão e o que denominam “segredinhos”.

    Um deles é incorporar uma porcentagem igualmente não revelada de pasta di riporto, a massa de pizza não assada no dia anterior, que já se encontra em processo de levedação avançada. O resultado é um tòrtano de casca crocante e miolo firme, porém macio. A Speranza assa mensalmente quase 1.4 tonelada do seu pão de linguiça na matriz da rua 13 de maio, e nos endereços da avenida Sabiá e do o delivery de Santana.

    Fez tanto sucesso que, entre as décadas de 1960-70, as grandes pizzarias e sobretudo as boas padarias ítalo-paulistanas a seguiram. Primeiro, foi a Basilicata Pão Italiano, da Rua Treze de Maio, 596, fundada em 1914 por um lucano (natural da região da Basilicata ou Lucânia). Coincidentemente, situa-se a poucos metros da matriz da Pizzaria Speranza. Depois, veio a Padaria São Domingos, da Rua São Domingos, 330, aberta em 1913 por um calabrês. Não por acaso, ambas se localizam no Bixiga. O tòrtano das duas tem alta qualidade.

    Mas a São Domingos merece um registro à parte. Vende o seu na loja junto à padaria e para uma centena de pizzarias e restaurantes de culinária italiana em São Paulo, além da clientela fora da cidade. Simultaneamente, da mesma forma que a Basilicata, faz a chamada rosca calabresa, que pode incorporar apenas linguiça ou só torresmo e provolone, ou os três recheios juntos, constituindo preparação distinta, pois a massa é de pão italiano.

    A palavra tòrtano derivaria de torta-no, no sentido de que não se trata de uma torta. Já casatiello viria da designação napolitana de queijo (cacio, de onde saiu cas’ e finalmente casatiello). Como dissemos, trata-se de um dos componentes enriquecedores da especialidade. Há também uma versão doce do casatiello, feita com ovos, açúcar, banha de porco, tendo na cobertura os famosos confeitos coloridos napolitanos (os deliciosos diavulilli). Também resulta ótima.

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    Falamos de um alimento veteraníssimo, elaborado pelo menos desde o século XVII. Confirma-se sua antiguidade no livro “O Pentamerão” (“Il Pentamerone”), também conhecido pelo subtítulo “O Conto dos Contos” (“Lo Cunto de li Cunte”), publicado em napolitano com o título “O conto dos contos ou entretenimento dos pequenos” (“Lo Cunto de li Cunti Overo lo Trattenemiento de Peccerille”). Na verdade, destinava-se principalmente ao entretenimento da corte; depois, às crianças.

    Seu autor foi Giambattista Basile (1566-1632, nascido perto de Nápoles, escritor pioneiro dos contos de fada na Europa e soldado mercenário a serviço da República de Veneza. O livro contém histórias clássicas recolhidas na tradição popular, entre as quais “Cinderela” ou “A Gata Borralheira” (“La Gatta Cenerentola”) e “A Bela Adormecida” (“La Bella Addormentata nel Bosco”). Posteriormente, o francês Charles Perrault e os alemães Irmãos Grimm, Jacob e Wilhelm, recontaram com modificações histórias inspiradas na obra de Giambattista Basile, reconhecendo a influência dele.

    Em “Cinderela”, um dos contos de fadas mais populares do mundo, o autor italiano descreve as festas dadas pelo rei para encontrar a garota maltratada pela madrasta e de identidade desconhecida por ele, pela qual se apaixonara, que ao fugir de um baile real perdera o sapato de cristal: “E veio o dia destinado, oh meu bem: que bom apetite e que falatório se fez! De onde vieram tantas (…) casatielle?”. A “Cinderela” de Giambattista Basile difere um pouco das versões que circularam posteriormente.

    Ele relata, por exemplo, que Cinderela matou a madrasta cruel deixando a tampa de uma arca cair em cima dela. Talvez por esse e outros detalhes, o famoso longa-metragem do gênero animação sobre a garota do sapato de cristal, produzido pela Disney em 1950, tenha se baseado no conto mais bem-comportado do francês Charles Perrault. O filme norte-americano evitou a história aterradora e, portanto, tornou-a mais adequada à infância.

    Os imigrantes napolitanos não introduziram só o tòrtano em São Paulo. Junto com os patrícios de outras regiões meridionais, revigoraram e expandiram a cultura do pão no Brasil. Era um alimento tradicional para eles. Na terra que adotaram não se diria o mesmo. Apesar de conhecido desde os tempos coloniais, apenas com a chegada da família real, em 1808, o pão se disseminou, com a mesma divisão social da Europa: o branco para os ricos, o escuro para os demais. Quem observou isso foi o pernambucano Gilberto Freyre, um dos mais importantes sociólogos do século XX, autor do imortal ”Casa-Grande & Senzala”, publicado em 1933.

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    Tínhamos pouco trigo e de má qualidade no passado, até os padres às vezes enfrentavam dificuldade de encontrá-lo para preparar a hóstia consagrada na liturgia da missa. Viajantes estrangeiros registraram o desconhecimento do pão pelos habitantes do sertão nordestino nas décadas de 1830-40. Nas demais regiões, a situação não diferia muito. Antes do pão, muitos brasileiros comiam beiju de tapioca no almoço e farofa no jantar; ou pirão escaldado, caldo de peixe ou de carne engrossado com farinha de mandioca nas duas refeições.

    Os imigrantes italianos expandiram a atividade da panificação no Brasil com receitas inovadoras. O pão italiano, de casca crocante, miolo ao mesmo tempo firme e macio, leve acidez no sabor, é hoje unanimidade nacional. Nos bairros que ocuparam em São Paulo, os imigrantes contaram no início com a parceria de padarias de portugueses, cujos fornos utilizaram para assar os seus pães e a pizza. Mas logo tiveram fornos em casa e abriram as próprias padarias. Duas remanescentes daquela época são as centenárias São Domingos e Basilicata.

    Ainda convém lembrar a Panetteria Italianinha, da Rua Rui Barbosa, 121, no Bixiga, aberta em 1896 como o nome de Lucânia, em homenagem à região de origem de Felipe Poncio, seu fundador. E a Padaria 14 de Jullho, na Rua Quatorze de Julho, 92, no Bixiga, aberta em 1897 por Rafaelli Franciulli, nascido em Santa Maria di Castellabate, a 120 quilômetros de Nápoles – um mecânico que chegou ao Brasil e virou padeiro porque encontrou poucos automóveis para consertar. Há também a Treze de Maio Panificação e Massas, inaugurada em 1917 pelo calabrês Antonio Mantello, no velho Bixiga, agora instalada na Avenida dos Carinás, 535, em Indianópolis, e controlada por um ramo da família da Basilicata. Qual a padaria desse elenco que faz o melhor pão em São Paulo? Quem de fato as conhece vota pelo empate. Benditos padeiros italianos!

    PÃO DE LINGUIÇA

    Rende 1 pão que pode ser dividido em 8 a 10 porções

    INGREDIENTES

    Massa

    .500g de farinha de trigo 00

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    .100g de banha de porco

    .280ml de água

    .2 colherinhas (café) rasas de fermento biológico seco

    .2 colherinhas (café) de sal fino

    .Pimenta-do-reino preta moída na hora a gosto

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    .Azeite extravirgem de oliva o quanto baste (para a finalização)

    Recheio

    .500g de linguiça calabresa

    .150g de queijo gruyère

    .50g de queijo parmesão

    PREPARO

    Massa

    1.Na tigela de uma batedeira planetária, usando o gancho (ou misturando à mão, se preferir) coloque os ingredientes da massa e bata bem, até obter um composto liso e homogêneo.

    2. Em uma segunda tigela, coloque a massa (para a primeira levedação) em um lugar morno, coberta com papel filme, por no mínimo 2 horas, até dobrar de tamanho.

    Recheio

    3. Enquanto a massa leveda, prepare o recheio.

    4.Corte a linguiça em finas rodelas e o queijo em pequenos cubos.

    5. Rale o queijo parmesão

    Finalização da receita

    6. Depois da massa levedada, estenda-a na máquina de macarrão ou no rolo manual, esticando-a até obter um retângulo de espessura fina.

    7. Vá distribuindo sobre a massa as rodelas de linguiça, os cubos do queijo gruyère, o parmesão ralado e enrole a massa no recheio, como se fosse um rocambole.

    8. Unte com azeite uma fôrma grande e redonda, furada no centro. Acomode a massa ali, delicadamente. Coloque a fôrma em um lugar morno, por 1 hora (segunda levedação).

    9. Passado esse tempo, pincele a superfície da massa com azeite de oliva e leve-a ao forno preaquecido a 180°C, por cerca de 1hora, cuidando para não queimar.

    10. Deixe esfriar antes de desenformar.

    – Receita preparada por Marcelo Hardt, padeiro amador em São Paulo/SP

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