Ontem, Jair Bolsonaro preferiu percorrer 847 quilômetros, entre Brasília e São Paulo, do que atravessar os mil metros que separam o Palácio do Planalto do Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Escolheu viajar para não encontrar, e ouvir, juízes do STF na posse de Rosa Weber na presidência do tribunal. A ausência foi notada pelo contraste com o comportamento de antecessores que zelaram pelo protocolo institucional — tanto no centenário da Independência, em 13 de setembro de 1922, quanto no sesquicentenário, em 5 de setembro de 1972, em plena ditadura.
Antes de viajar, foi à Embaixada do Reino Unido, a sete quilômetros de distância do Planalto, para o ritual diplomático de assinatura do livro de condolências. Registrou um elogio ao “senso de dever” da rainha Elizabeth IIª que, para ele, “deixou um legado de liderança ele estabilidade”.
Senso de dever constitucional é mercadoria escassa na Presidência da República. No Supremo, Bolsonaro figurou como sujeito oculto nas críticas à instabilidade institucional que legou nos últimos três anos e meio de governo.
A juíza Cármen Lúcia, por exemplo, comentou em discurso: “Não se promove a democracia com comportamentos desmoralizantes de pessoas e de instituições.” No tumulto político, disse, tenta-se forçar portas para introduzir “até mesmo despautérios civilizatórios que já se pensavam sepultados, por serem incomuns aos humanos”.
Rosa Weber manteve o tom. “Vivemos tempos particularmente difíceis da vida institucional do país, tempos verdadeiramente perturbadores, de maniqueísmos indesejáveis”, disse. “O Supremo Tribunal Federal não pode desconhecer esta realidade, até porque tem sido alvo de ataques injustos e reiterados, inclusive sob a pecha de um mal compreendido ativismo judicial, por parte de quem, a mais das vezes, desconhece o texto constitucional e ignora as atribuições [impostas pela] Constituição que nós juízes e juízas juramos obedecer.”
O STF detém “o monopólio da última palavra” na interpretação constitucional, ressaltou. Tem sido assim nos últimos 131 anos, lembrou, em referência a um debate no Senado que passou aos livros de história.
Foi na última sessão de 1914, na terça-feira 29 de dezembro. Os senadores Rui Barbosa e Pinheiro Machado discutiam decisões do tribunal sobre atos inconstitucionais do marechal Hermes da Fonseca, do Partido Conservador, pouco antes ser sucedido pelo advogado Venceslau Brás na Presidência da República.
Rui Barbosa havia batalhado na Constituinte de 1891 para atribuir ao Supremo o papel de guardião do texto constitucional. No debate com Pinheiro Machado, ele foi ainda mais incisivo na defesa do STF.
Rosa Weber resgatou-o no discurso de ontem: “Disse Rui Barbosa: ‘O Supremo Tribunal Federal é esta instituição criada sobretudo para servir de dique, de barreira e de freio às maiorias parlamentares, para conter as expansões do espírito do partido. É essa força que diz —até aqui permite a constituição que vás; daqui não permite a Constituição que passes. Eis para o se criou o Supremo Tribunal Federal, que não têm empregos para dar, nem tem tesouros para comprar dedicações, não tem soldados para invadir estados, não tem meios de firmar a sua autoridade senão no acerto de suas sentenças’, discursou em 1915.”
Acrescentou: “E já no debate, em 1914, Rui Barbosa observava: ‘O Supremo Tribunal Federal, não sendo infalível, pode errar. Mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma coisa que seja considerada, como erro ou como verdade. Isso é humano.’ E de descumprimento de ordens judiciais sequer se cogite em um Estado Democrático de Direito.”
A essa altura, Bolsonaro desembarcava em São Paulo.