Nascido em São Leopoldo-RS, o historiador Leandro Karnal, 59, tornou-se conhecido e amado pelo grande público por meio de suas participações no Café Filosófico da CPFL. Com uma notável capacidade comunicativa e talento singular para concatenar ideias complexas, Karnal é daqueles eruditos que consegue juntar Norman Bates do filme Psicose (Alfred Hitchcock) e Robinson Crusoé (Daniel Defoe) num mesmo argumento, fazendo o difícil tornar-se compreensível. Com anedotas que já se tornaram memes em grupos de WhatsApp, como a do “coentro” (ele tem ojeriza a planta aromática), o historiador atrai aplausos e provoca, conforme costuma dizer, “reações bovinas” – hummmm – nas plateias que abarrotam os auditórios de todo o país para assistirem suas palestras.
Filho de Renato e Jacyr, é o terceiro de quatro irmãos. Criado num ambiente católico, estudou Filosofia com os jesuítas – quase se tornando padre – mas foi na História que encontrou sua grande paixão, obtendo, aos 31 anos, o título de doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Afora seus compromissos semanais, que incluem uma coluna no jornal O Estado de S. Paulo e um programa na CNN Brasil, Karnal se dedica a opinar, argumentar e promover debates em suas redes sociais e em seu canal no YouTube (“Prazer, Karnal”), que já conta com mais de 1 milhão de inscritos.
Em entrevista exclusiva para a coluna, Leandro Karnal respondeu perguntas sobre o fenômeno religioso, comentou a relação dos evangélicos com a política e deu instruções para o iminente processo eleitoral.
A seguir leia a entrevista completa:
Rodolfo Capler – Por meio de suas declarações autobiográficas, ficamos sabendo que o senhor já foi muito católico, porém hoje se identifica como ateu. O que te fez abandonar a fé religiosa?
Leandro Karnal – Não tenho certeza se eu tenho consciência clara do que ocorreu. Descrevi em livros (“Pecar e Perdoar” e em “Crer ou não crer”, com o padre Fábio de Melo) que a fé foi deixando de ter sentido e fui me sentindo falando sozinho quando rezava. Não tem relação com a Igreja (continuo fascinado pela história das religiões) ou pela literatura apologética de ateísmo (que só estudei muito depois). Foi um processo interno. Não existe nenhuma raiva institucional. Nunca me tornei anticlerical. Meu processo só serve para mim, nunca é um modelo ou a defesa de um caminho. Tudo muda. Já fui muito religioso, sou ateu, posso me tornar tudo no futuro.
Rodolfo Capler – Lemos notícias sobre violência e até de guerras em nome da religião quase diariamente. O mundo seria um lugar mais pacífico sem religião?
Leandro Karnal – Discordo da ideia. Países oficialmente ateus como a URSS e a China comunista sempre foram muito agressivos com os vizinhos. Acho que a violência é humana e independente de ideias religiosas. Somos violentos porque a violência preenche muita coisa em nós e nas nossas sociedades. Apenas… concordo com Pascal que a violência e o mal feito em nome de valores como Deus estão entre os atos mais cruéis do mundo. Da mesma forma, ampliando Pascal, a violência para instaurar uma sociedade ideal sempre foi devastadora, como na Revolução Cultural Chinesa. Assim, as piores violências são sempre em nome de valores tidos como morais. Mao e Torquemada imaginaram melhorar seu mundo. Eu sempre desconfio de catequistas (religiosos ou marxistas).
Rodolfo Capler – No clássico “Raízes do Brasil”, de 1936, o grande Sérgio Buarque de Olanda, fazendo menção direta a Thomas Ewbsnk, manifesta dúvidas de que o protestantismo histórico, com suas formas rigorosas de culto, floresceria nos trópicos. Quase nove décadas depois, os evangélicos representam 31% da população brasileira e avançam para se tornarem maioria no país em menos de duas décadas. Como o senhor interpreta esse crescimento vertiginoso dos evangélicos?
Leandro Karnal – Uma distinção importante. O protestantismo histórico (luteranismo, por exemplo) permanece bem restrito a comunidades de imigrantes e não vive uma expansão notável. O que cresce é o neopentecostalismo com seus apelos carismáticos, teologia da prosperidade, cultos com recursos como curas e exorcismo, sociabilidade expressiva e sentimentos de pertencimento. Lançarei uma hipótese que precisaria de uma pesquisa mais densa: o crescimento das igrejas como Universal ou Renascer em Cristo ocupam um espaço do vazio católico que a Teologia da Libertação ou a modernidade mais racional pós Concílio Vaticano II. Assim, podemos identificar o paradoxo de uma nova onda católica tradicional com ênfase na velha magia religiosa que sempre foi cara ao povo brasileiro e analisada por Sergio Buarque no Brasil ou Keith Thomas para o caso inglês.
Rodolfo Capler – O que o senhor acha da atual polarização política do país e como a fé cristã-evangélica influencia isso?
Leandro Karnal – Sempre fomos muito polarizados e as religiões participavam disto. Exemplo: a Marcha com Deus, pela Família e pela Liberdade, em 1964, era orientada pelo catolicismo tradicional. Na época, sem internet, agitava-se o rosário. Os evangélicos neopentecostais são uma novidade crescente na cena política e possuem projetos e interesses específicos e se aproximam de políticos que podem favorecer tais projetos. Isso inclui convicções sinceras contra o aborto ou oportunismos variados. Existe uma reação quase global de desconfiança com a modernidade (dissolução de fronteiras de gênero, etc.) que encontra eco em projetos políticos conservadores e instituições religiosas.
Rodolfo Capler – Sendo um observador do fenômeno religioso, como o senhor vê a participação de pastores evangélicos na política? Isso é bom ou ruim para a democracia?
Leandro Karnal – Vamos lembrar: o Brasil já foi governado por padres como Feijó, já considerou ser católico condição para votar e a cerimônia religiosa já foi o documento válido de casamento. Os partidos católicos da década de 1950 elaboravam listas de candidatos que os católicos poderiam votar e a igreja excomungava políticos por posturas contrarias à sua posição (como foi, na Argentina, Perón). Tivemos, em pleno século XX, padres deputados. A Igreja Católica é um fato político muito tradicional. Isso não parecia incomodar muita gente. Quando surgem os pastores protestantes com forte articulação nas redes, a opinião urbana ilustrada se assusta.
Rodolfo Capler – Mesmo constituído um Estado laico há mais de um século, o Brasil tem uma forte presença religiosa (sobretudo a cristã), na esfera pública. Um exemplo disso é a Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional que atua defendendo sua própria agenda em detrimento dos interesses da maioria. Essa interferência agride a laicidade do Estado?
Leandro Karnal – As constituições históricas foram promulgadas em nome de Deus. Há crucifixos católicos no STF, na Câmara dos Deputados, no Senado e na maioria dos tribunais. Os feriados são religiosos. O Núncio Apostólico do Vaticano tem precedência sobre todos os outros embaixadores. Tivemos dois presidentes protestantes na história republicana e apenas um que se dizia ateu oficialmente e, mesmo assim, evitava falar nisto. Símbolos religiosos são protegidos pela lei. Escrevemos nas notas “Deus seja louvado”. As constituições estaduais pós-1988 também estimulam o ensino religioso. Sim, a Frente Parlamentar evangélica pode arranhar a ideia de estado laico, mas, cabe a dúvida: somos um estado laico?
Rodolfo Capler – Como o senhor analisa a presença pública dos evangélicos no Brasil? Eles estão contribuindo para o progresso do país?
Leandro Karnal – Pergunta ambígua. Cada grupo terá um modelo de progresso. Nem entre os bispos católicos existe um modelo único. Os militares usavam muito a ideia de progresso como base de um discurso desenvolvimentista. Tenho certeza de que os evangélicos acreditam que contribuem com o que haveria de melhor para o Brasil. E, mesmo assim, os evangélicos não são um único bloco. Há muitas vertentes, mas – sim – alguns religiosos (católicos, evangélicos, judeus e islâmicos) possuem dificuldade com a ideia de diversidade.
Rodolfo Capler – A aproximação entre bolsonarismo e evangelicalismo é um risco para a democracia? Como o senhor enxerga este processo?
Leandro Karnal – Muitas propostas do bolsonarismo são riscos para a democracia. A associação com os grupos mais conservadores dentre os evangélicos é um desafio pelo incentivo direto à intolerância.
Rodolfo Capler – O slogan do atual governo“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, mascara uma confessionalização da política?
Leandro Karnal – É um recurso político do núcleo duro do bolsonarismo. Curiosamente, o atual presidente não é religioso. Ele é um católico que se deixou batizar por um pastor para agradar a alguns grupos. Não é um grande conhecedor da Bíblia e não parece alguém identificado com os valores centrais do Sermão da Montanha, núcleo duro das ideias de Jesus. A biografia familiar de Bolsonaro o afasta de um defensor da estabilidade familiar e do casamento permanente. Para mim, ele cumpre o modelo do capítulo 18 do Príncipe: parece todo piedade para fins de controle político. Os pastores sabem que, no fundo, Bolsonaro não é um homem religioso de fato, mas também é útil a eles. Estamos diante de tradição política. Getúlio Vargas, cético ao extremo, inaugurou o Cristo Redentor no dia de Nossa Senhora Aparecida. Isso não é Bíblia, trata-se d’o Príncipe de Maquiavel.
Rodolfo Capler – Vemos uma corrida dos candidatos políticos para conquistar o eleitor evangélico, com muitos deles simulando atos de fé. A religião sempre foi uma força mobilizada durante as eleições?
Leandro Karnal – Sim, sempre foi. Ir ao encontro do eleitor é condição de sobrevivência do poder. Um político fluminense perdeu o mandato por gravíssimas posturas sexuais inapropriadas. Ao sair do cargo, invocou a força soberana de Deus. Deus, pátria e família são refúgios tradicionais de canalhas. Existem religiosos autênticos e sinceros, raramente estão na política.
Rodolfo Capler – Qual mensagem o senhor gostaria de deixar para o eleitor brasileiro?
Leandro Karnal – Verificar o projeto de cada candidato ou candidata sobre educação, aumento de empregos e saneamento básico. Qual o compromisso com a questão ambiental? Entender que o que mais afeta a família e o desemprego é violência urbana e não o debate sobre todos ou todes. Nenhuma família jamais se desfez por pronomes de tratamento… Entender que a pessoa eleita será governante do Brasil e não da minha igreja ou do meu sindicato. E, acima de tudo, buscar ética e visão construtiva de mundo, mesmo se o candidato defender Exu, Jesus, Alá ou outra entidade. Ler o artigo quinto da Constituição de 1988 é mais importante do que uma passagem do Levítico. Uma das conquistas da modernidade é tornar a religião algo de foro íntimo. Toda vez que política e religião se misturaram, o resultado foi um limite extremo à liberdade humana e um dano à imagem religiosa. Se eu fosse religioso, eu exigiria a retirada dos crucifixos do Supremo e do Congresso. Não gostaria de um símbolo da minha fé lá. Quem governa o universo e nossas almas imortais, para um cristão convicto, é Deus. O posto de Comandante Supremo do universo já está ocupado, pois. A eleição é para quem vai implementar boa política de vacinas para nossos corpos e saneamento nas nossas cidades. A sorte está lançada e seja o que o Big Bang quiser…
* Rodolfo Capler é teólogo, escritor e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP