Consumo de carne agora invade as discussões de gênero
Criticado por fazer mal à saúde e ao ambiente, o ato de comer um bom bife passa a alimentar debate sobre diferenças entre homens e mulheres
Questionar o hábito milenar de consumir proteína animal sempre despertou discussões acaloradas à mesa. A defesa do vegetarianismo teve início com questões relacionadas à saúde, passou pela compaixão com a vida dos animais e, mais recentemente, se tornou um tema ambiental, dado o impacto da pecuária bovina nas mudanças climáticas. Eis que, na esteira do debate em torno dos papéis do homem e da mulher na sociedade, comer carne ganhou novo e picante tempero, dessa vez no rol dos assuntos de gênero: confraternizar ao redor da churrasqueira, traçando fatias de picanha, seria exibição do mais puro e condenável machismo.
A chapa esquentou na França, país do tradicionalíssimo steak tartare — que, como se sabe, é virilmente consumido cru —, onde, de acordo com uma pesquisa da Agência de Saúde, homens ingerem o dobro de carne vermelha, em comparação com as mulheres. Durante um debate sobre mudanças climáticas na Assembleia Nacional, a deputada Sandrine Rousseau, do Partido Verde, ergueu a voz para afirmar que a salvação do planeta passa por uma mudança dos hábitos alimentares masculinos. “Comer um bife tem de deixar de ser visto como símbolo de virilidade”, disparou. A reação dos radicais do outro lado foi imediata. “Consumimos mais carne do que as mulheres desde o início dos tempos. Não se trata de virilidade. É da nossa natureza”, rebateu Julien Odoul, do partido de extrema direita Reagrupamento Nacional.
Polarização política à parte, não faltam estudos para tentar decifrar se o apreço dos homens pela carne, sobretudo a vermelha, tem uma origem ancestral, fincada na evolução da espécie humana, ou se é consequência de fatores culturais, relacionados à valorização da masculinidade. Na primeira hipótese, argumenta-se que enquanto às mulheres pré-históricas cabia a função de coletar frutos e ervas, os homens eram responsáveis pela caça, atividade que consome mais energia e os levava a ingerir uma porção maior das presas. Ao longo da evolução, o costume teria se tornado um traço genético. “É possível que, em razão da seleção natural, os homens realmente tivessem maior necessidade de ingestão de animais. No entanto, os estudos atuais apontam que a genética perde para os fatores socioculturais”, explica o geneticista Salmo Raskin. Uma pesquisa conjunta entre as universidades da Finlândia Oriental e de Amsterdã, na Holanda, revelou que durante a infância os genes, de fato, pesam na preferência dos meninos pela carne, mas esse fator perde relevância na vida adulta.
Fatos históricos contribuem para reforçar a tese de que o hábito é mais significativo do que o DNA na preferência masculina. Durante a I Guerra, proteína animal era alimento reservada exclusivamente aos soldados em combate, para estimular neles valores como força e coragem, restando às mulheres, no carnê de racionamento, pão e vegetais. “O imaginário do caçador deixou marcas profundas nos papéis atribuídos ao homem na sociedade”, reforça a socióloga Roberta Mélo, professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco. Até o ponto do churrasco tem seu papel no debate, submetendo a piadas e olhares oblíquos o homem que rejeita um filé sangrando. O estudante de psicologia Christiano Vaz, 22 anos, confirma que não é fácil ser vegetariano, opção que adotou por recomendação médica. “Fazem comentários homofóbicos e questionam minha masculinidade”, relata.
Mesmo conhecendo os efeitos adversos do consumo excessivo de carne vermelha, como aumento do colesterol e hipertensão, a maior parte dos homens resiste a uma dieta baseada em grãos e vegetais. Pesquisa realizada pelo movimento internacional No Meat May, que procura incentivar as pessoas a passar o mês de maio sem ingerir proteína animal, mostrou que 73% dos homens preferem morrer dez anos mais cedo a abrir mão da carne vermelha. Retrato fiel dessa predileção, os homens no Brasil, país que concentra o maior rebanho comercial de bovinos do mundo, comem 70% mais carne do que as mulheres, segundo o National Center for Biotechnology Information — mais do que o dobro do recomendado pela Organização Mundial da Saúde. “Há uma dezena de outros alimentos que são fontes de proteína e que suprem perfeitamente a necessidade do organismo, mas culturalmente isso ainda não é aceito”, reforça a nutricionista Luciana Sarmento, da PUC-Rio. Para os homens, o fraco é a carne.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823