Aplicativos de entrega são vilanizados ao manterem suas caixas-pretas
Distanciamento social fez disparar o número de restaurantes e entregadores nas plataformas de delivery, que se recusam a mostrar dados aos parceiros
Milhares de motoristas de aplicativos pararam algumas das avenidas mais movimentadas do país na quarta-feira, dia 1º. Programada há um mês, a mobilização nacional intitulada “Breque dos Apps” reivindicava, dentre outras coisas, melhores condições de trabalho e aumento do valor das corridas. Na cidade de São Paulo, a paralisação reuniu centenas de motociclistas e durou mais de sete horas. Mas não são só eles que estão insatisfeitos. Bares, restaurantes e supermercados pedem a redução das taxas pagas a empresas como iFood, Rappi e Uber Eats, ainda que as mesmas tenham reduzido suas taxas sobre a venda e antecipado os recebíveis aos vendedores das plataformas durante o período de pandemia, num momento em que os apps foram uma das poucas fontes de recursos dos estabelecimentos. Num contexto mais amplo, o que acontece é claro: com as medidas de restrição do comércio não essencial por conta do novo coronavírus, esses aplicativos receberam um sem-número de novos entregadores — muitos deles perderam seus empregos formais ou tiveram seus contratos suspensos com o fechamento do varejo — e de novos restaurantes cadastrados, o que têm reduzido paulatinamente a receita de ambos os lados dessa cadeia.
VEJA esteve na Avenida Paulista, um dos pontos de concentração da manifestação em São Paulo, e ouviu diversos entregadores na região. Pessoas que não participavam da manifestação e seguiam trabalhando por meio dos apps relataram, quase sempre, a mesma história. São novatos nesse tipo de serviço, que se cadastraram nos apps por necessidade de pagar suas contas em meio ao elevado índice de desemprego do país, e resolveram se arriscar durante a pandemia de Covid-19 para ganhar cerca de 50 reais ao dia. A jornada é de, em média, 12 horas por dia e requer muitas pedaladas. Tanto esforço é recompensado com ganho líquido mensal de aproximadamente 1.200 reais — 24% acima de um salário mínimo com descontos. Quem se arrisca a trabalhar durante maior tempo e é melhor avaliado nas plataformas, tem chances de retirar um salário maior. Embora a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) destaque que o setor não sofreu com a paralisação — as vendas pelos aplicativos representam pouco mais de 20% do faturamento complementar do setor —, a diminuição de oferta e demanda afetou algumas regiões. Cesar Melo, dono da hamburgueria The Burger Market, que fica próximo à Avenida Paulista, disse que, quando o dia é “bom”, realiza 18 vendas pelo iFood, mas que ontem, devido aos protestos, seu estabelecimento não teve demanda pelo app. Já Leila Fátima, proprietária do Pastel da Augusta, viu seu volume de pedidos diminuir mais de 50% no horário de almoço.
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Clique e AssineO dono do The Burger Market ainda ressalta que, mesmo durante a pandemia, seu volume de pedidos caiu. Faz sentido. Desafiados diante da suspensão das atividades durante a pandemia, bares e restaurantes considerados grifes de regiões nobres, que antes não figuravam em aplicativos como iFood, Rappi ou Uber Eats, tiveram de rever seus conceitos. Como são mais conhecidos e possuem maior oferta de produtos, ganharam também mais visibilidade nos marketplaces. O resultado disso foi que estabelecimentos pequenos e médios que atuavam nas plataformas sofreram mais com o ambiente competitivo. “Com a pandemia, aquele dono de restaurante que falava que nunca ia colocar sua marca no delivery, teve de entrar. Ou seja, houve um inchaço muito grande do lado dos restaurantes, mas que foi maior ainda por parte dos motoboys”, diz Andreas Blazoudakis, cofundador da Movile, controladora do iFood, e presidente do conselho de inovação do Delivery Center. Há, ainda, por trás desses aplicativos grandes “caixas-pretas”. Ninguém sabe ao certo a quantidade de dinheiro que circula entre eles, o que gera desconfiança nos parceiros. Em 26 de maio, Paulo Solmucci, o presidente da Abrasel, enviou uma carta aos diretores-executivos das plataformas iFood, Rappi e Uber Eats, solicitando maior transparência das informações financeiras do aplicativo. “Há risco de não estarmos recebendo as taxas corretas. E nós queremos ter acesso aos dados dos nossos clientes que compram pelos apps, para entender melhor o nosso consumidor”, diz Solmucci. Ele, no entanto, ressalta que os aplicativos foram cruciais para evitar falências no setor. “Tem muita coisa para resolver, mas eu jamais nos colocaria numa posição de inimigos deles.”
Os entregadores fazem uma série de exigências aos aplicativos, como reajuste de preço, dissídio anual, tabela de preços, fim de bloqueios indevidos, entrega de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), apoio contra acidentes e o aprimoramento do programa de pontos. Hoje, os entregadores recebem entre 4,50 reais e 7,50 reais, um valor que varia por aplicativo e por distância percorrida — mais 50 centavos a 1 real por cada quilômetro rodado. Eles solicitam um aumento dessas taxas e uma revisão anual, uma espécie de dissídio como o que é negociado por sindicatos junto a empresas. Querem apoio contra acidentes no tempo de trabalho, algo que algumas plataformas, como o iFood, dizem oferecer. O aprimoramento do ranking de pontos seria porque, na visão das lideranças do protesto, para ser bem ranqueado e receber mais chamadas, a pessoa teria de trabalhar de “domingo a domingo”. Blazoudakis vê sentido em algumas das reivindicações dos motoqueiros e diz que os aplicativos de entrega terão de aprimorar a inteligência artificial das plataformas, que é uma das razões ocultas por trás da insatisfação deles. “O que tem deixado os caras bravos é que o algoritmo do marketplace manda o motoboy para o restaurante assim que recebe o pedido. Ele chega e ainda tem de esperar o pedido ficar pronto. E como há excesso de motoristas, os aplicativos muitas vezes tiram eles de regiões como a Paulista e os mandam para Moema, na zona sul, onde há menos demanda. O app faz isso porque na Paulista há muito mais motoboys do que se precisa ter”, diz. O excesso de entregadores faz com que aqueles que não são tão bem avaliados acabem sendo preteridos e, por vezes, até bloqueados do sistema — os “bloqueios indevidos” são uma das principais reclamações deles.
A despeito do uso legítimo do direito de manifestação, o protesto dos entregadores foi inflado pela participação de sindicatos. Ao menos a UGT, uma das maiores centrais do país, levou integrantes para a Avenida Paulista. Mesmo que tenha sido apenas forma de apoio, não são raras as vezes em que sindicalistas se aproveitam desses movimentos para se fortalecerem e acabam raptando a pauta. Durante as manifestações, o que se viu também foi uma imposição daqueles entregadores que iniciaram a paralisação em detrimento da opção daqueles que gostariam de ter trabalhado, algo pouco democrático. Além disso, como não poderiam contar todos os trabalhadores que preferiam manter suas motocicletas e bicicletas na ativa, iniciaram pelas redes sociais o movimento para impedir que os clientes dos aplicativos também aderissem à paralisação. É como se um metalúrgico pedisse para o comprador de um carro não comprasse naquele momento para penalizar a fábrica. Contudo, o que conseguiram fazer foi apenas aumentar a agrura dos proprietários de bares e restaurantes, justamente um dos tipos de empreendedores que mais sofreram desde o início do distanciamento social. Não foram registrados momentos em que os entregadores grevistas reivindicaram o que pode, de fato, mudar o jogo — a seu favor e a favor de toda a cadeia de consumo: as informações financeiras dos aplicativos.
Por serem startups, com dono e capital fechado, essas empresas não prestam contas a ninguém. Valem bilhões de dólares, consideradas unicórnios, mas acreditam que os únicos que devem ter acesso às informações financeiras são os sócios do aplicativo, ou seja, os fundadores e os investidores. O que se sabe, por trás dessas “caixas-pretas” é que, em suma, essas startups cresceram captando dinheiro de grandes investidores, muitas vezes ligados a conglomerados financeiros. Esse capital ostensivo se tornou, então, financiador de um plano de investimento acelerado, com muita queima de caixa e ofertas atrativas ao consumidor para popularizar as marcas. O resultado dessa estratégia, conhecida como Burn Rate, traz dificuldade para alcançar o ponto de equilíbrio que, depois de atingido, permite a operação a começar a lucrar. Por isso, sabe-se que a maioria delas, mesmo já consolidadas no comércio eletrônico brasileiro, ainda registram prejuízos. A disputa pelo bolso do consumidor faz com que o mercado se consolide na mão de poucos players. “A entrada é quase sempre da mesma forma. Demanda uma grana muito alta para você ‘comprar o mercado’ e fazer com que os clientes assumam o hábito de comprar na sua plataforma”, diz o especialista em comércio eletrônico Pedro Guasti, cofundador da Ebit, agência de pesquisas que hoje é pertencente à Nielsen. “O desafio é rentabilizar o negócio. O delivery ainda tem margens muito apertadas. Com grande escala, redução de custos e eficiência, você consegue fazer isso se tornar rentável”. Ele acredita que protestos como o de ontem serão passageiros, assim como a Uber sofreu, por diversas vezes, com críticas de taxistas e, posteriormente, dos próprios motoristas do app. “É o dinamismo da economia”, afirma. Uma nova manifestação é esperada para o próximo dia 15.