Marca lança vinhos que misturam uvas cultivadas em países diferentes
A australiana Penfolds enfrenta tradicional e milenar cultura regionalista da indústria
Diz o ditado latino de origem grega que in vino veritas — no vinho está a verdade. Além de seu evidente valor social, ao reunir pessoas ao redor de uma mesa, esse néctar tem, entre outras propriedades, a vocação para validar e transmitir as nuances de uma cultura regional. As denominações de origem e os sistemas de certificação da procedência da bebida foram criados justamente para garantir que o líquido na garrafa reúne as características do terroir onde foi produzido, além de seguir práticas definidas pela legislação do local. É isso o que permite aos enólogos e sommeliers distinguir com alguma precisão um Bordeaux envelhecido em Bas-Médoc de outro feito em Pessac-Léognan. A australiana Penfolds, porém, resolveu ir na direção oposta ao lançar, no início do ano, vinhos que misturam uvas cultivadas em países diferentes.
Terroir é um conceito abrangente, que envolve os solos, clima e tempo, altitude, ângulo de inclinação, além de toda a atividade humana por trás da produção do vinho em um determinado lugar. É o que dá poder a regiões vinícolas como Champagne, na França, ou Napa Valley, nos Estados Unidos. Ao apresentar a California Collection em fevereiro, a Penfolds subverteu esse dogma. São quatro rótulos, dos quais dois, o Bin 149 e o Quantum Bin 98, se destacam por misturar uvas cultivadas na Austrália e nos Estados Unidos. Para driblar eventuais questionamentos, a empresa imprimiu nas garrafas o carimbo de “Wine of the World” (vinho do mundo). A marca diz que passou mais de vinte anos preparando essas cepas, período no qual importou pela primeira vez mudas de videira da região da Austrália Meridional para plantá-las em solo californiano.
A ousadia da Penfolds, em clara jogada de risco, está explícita na ficha técnica de seus novos vinhos. O Bin 149 combina a cabernet sauvignon do Napa Valley (85,1%) com a cabernet cultivada na Austrália Meridional (14,9 %). Já o Quantum Bin 98 acrescenta a shiraz da Austrália Meridional (13%) a uma base de cabernet do Napa (87%). A classificação de ambos entre reputados críticos internacionais é alta, superando na maior parte das vezes 95 pontos da cotação de 100 possíveis. O Quantum foi o único a conseguir uma nota máxima, da crítica Meridith May, diretora da revista americana de sommeliers The Somm Journal. Isso explica, entre outras coisas, o investimento em uma campanha publicitária que tem como estrela o jogador australiano da NBA e enófilo Ben Simmons, atualmente armador do Philadelphia 76ers.
Parte da Treasury Wine Estates, multinacional com sede na Austrália e propriedades na Nova Zelândia e Itália, a Penfolds tem boa reputação e um catálogo formado por produtos de primeira linha, inclusive vinhos regionais. “O que importa, acima de tudo, é o resultado final”, diz o sommelier e consultor Luiz Felipe Campos. “A empresa não se arriscaria se não fosse compensar os clientes com um vinho de qualidade.” No site da vinicultora australiana, as garrafas estão sendo vendidas por 149 dólares (Bin 149) e 700 dólares (Quantum Bin 98). No Brasil, a Inovini, que comercializa os produtos da marca, ainda não tem previsão para importá-los. De fato, os vinhos que combinam uvas de países diferentes trouxeram novos sabores ao mercado de vinhos, mas o conceito terroir está muito, mas muito longe de ser superado.
Publicado em VEJA de 7 de julho de 2021, edição nº 2745