Faz bem aos olhos e ao paladar. A região do Alto Douro Vinhateiro, no nordeste de Portugal, próxima da cidade do Porto, com videiras plantadas nas encostas à beira do rio que dá nome à paisagem, é considerada desde 2001 patrimônio mundial pela Unesco, dada a beleza do lugar. Foi ali, em 1756, que o Marquês de Pombal (1699-1782), então secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino de dom José I, criou uma classificação para avaliar as vinícolas daquele chão — e pela primeira vez na história deu-se a demarcação de terra atrelada a um tipo específico de vinho, dito “fortificado”, no jargão, de maior teor alcoólico e potencial de guarda. Foi uma jogada pioneira e visionária, feita 99 anos antes da denominação de Bordeaux, na França.
Com o passar do tempo, o Douro começou a produzir também safras de outra ordem, os “tranquilos”, de fermentação natural e sem as borbulhas características de um espumante. Eles são elaborados com uvas relevantes como a touriga nacional e a touriga franca (ou francesa, como é conhecida). Há agora, para além da linhagem mais comum, para além dos celebrados fortificados e tranquilos, uma novidade interessante demais para ser desdenhada: a produção de rótulos ancorados em outras variedades de uvas, antigas, esquecidas pelo tempo, abandonadas, mas que ainda podem vicejar com potência. É um trabalho de arqueologia, liderado pela jovem geração de enólogos, treinados com ciência para olhar o passado do terroir e zelar pela inovação.
Um bom exemplo dessa tendência está na Real Companhia Velha, a mais antiga empresa de vinhos de Portugal. Estabelecida em 1756, quando Pombal assinou o decreto seminal, tinha como missão proteger a qualidade das safras lá extraídas e as boas práticas vitivinícolas. Ao longo de mais de 200 anos, tornou-se nome incontornável em qualquer conversa de amadores e profissionais do Porto. Nos anos 1950, expandiu os negócios. Acreditava-se, naquele tempo, como ainda até muito recentemente, que as “boas uvas” deveriam ser reservadas apenas ao vinho fortificado. Mais tarde, as portas foram abertas para os tranquilos. E agora, enfim, a terceira geração no comando da casa, aos cuidados de Pedro da Silva Reis, tem se debruçado sobre a herança local. “Analisamos os vinhedos que nossos antepassados deixaram e às vezes encontramos trinta, quarenta variedades em uma única parcela”, diz Reis. “Até muito recentemente não havia essa preocupação.” E deu-se o sucesso de castas autóctones, como gouveio, bastardo, rufete e donzelinho branco, entre outras, de nomes simpáticos. Elas deram origem ao projeto Séries, celebrado internacionalmente pela coragem de vasculhar as camadas do ontem.
A onda não para de crescer, em bonito movimento. Outras vinícolas daquele naco da Península Ibérica buscam iluminar a diversidade de antanho. A enóloga Joana Maçanita, que já prestou consultoria para produtores de norte a sul em Portugal, encontrou no Douro o local ideal para um projeto pessoal, desenvolvido ao lado do irmão, Antonio. Ao analisar vinhedos antigos, alguns com mais de 150 anos de idade, encontrou categorias de uvas promissoras, como a cornifesto, tinta carvalha, tinta bastardinha e casculho. “Nem mesmo reputados e treinados enólogos de Portugal as conhecem”, diz ela, com a precisão de quem abandonou o curso de engenharia para mudar de profissão.
A jornada ainda será longa, em um festival de possibilidades, mas há um desafio: convencer o consumidor a abrir mão do conhecido. No mundo do vinho, todo lançamento é visto com desconfiança, antes de ser aprovado em degustações. Se a novidade tem cara de antigamente, como no Alto Douro Vinhateiro, o obstáculo é ainda mais alto. A tradição é dura de ser vencida, até que se possa proferir uma frase de Louis Pasteur (1822-1895): “Uma garrafa de vinho contém mais filosofia do que todos os livros do mundo”.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894