As disputas diplomáticas em torno da origem de pratos populares
Uma sopa de beterraba está no centro da nova briga entre Ucrânia e Rússia. Não é a única rivalidade global gastronômica
Em pé de guerra com a Rússia desde que Moscou anexou a Crimeia, postou tropas na fronteira e ameaça avançar mais, a Ucrânia empreende agora um embate mais saboroso com o poderoso vizinho: a origem do borscht, uma espécie de sopa de beterraba consumida com gosto em toda a Europa Oriental. A disputa é encabeçada pelo Instituto da Cultura da Ucrânia, ONG criada pelo chef ucraniano Ievgen Klopotenko em resposta a um tuíte postado na página oficial do Kremlin em maio do ano passado descrevendo a iguaria como um dos pratos “mais famosos e amados da Rússia, um símbolo da culinária tradicional” do país. Atiçado em seu brio nacionalista, que já se ressentia da frequente denominação do borscht como “sopa russa”, Klopotenko realizou uma cruzada que resultou na inclusão do acepipe na lista de patrimônio cultural imaterial do Ministério da Cultura e, espera ele, eventualmente culminará na glória definitiva: entrar para o seleto clube de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade compilado pela Unesco.
O documento oficial mais antigo associando o borscht à Ucrânia data da primeira metade do século XVI: um relato de um viajante alemão à região. Mas, como ressaltou Klopotenko a VEJA, as evidências do consumo de uma sopa à base de beterraba pelos habitantes locais remontam a 1 500 anos atrás. Na época, a Ucrânia e a porção europeia da Rússia compunham uma mesma confederação de tribos eslavas chamada Rússia de Kiev, cujo centro político-cultural era a atual capital ucraniana. No tuíte da discórdia, o Kremlin aponta a origem do borscht justamente à Rússia de Kiev, que matreiramente rebatiza de “Rússia antiga”. “O governo russo acredita ser o herdeiro legítimo da cultura das ex-repúblicas soviéticas”, critica o chef.
Ponto de honra no terreno das vaidades nacionais em todo o mundo, a origem das comidas é questão especialmente suscetível na Europa, onde os países foram forjados por guerras. “As práticas nacionais europeias são de separação: a nação se forma a partir das suas distinções em relação às demais”, explica o semiólogo Urbano Nojosa, da PUC-SP. Mas o conflito gastronômico tem batalhas espalhadas por todo o planeta. Recentemente, a Coreia do Sul e a China trocaram farpas oficiais e mensagens iradas nas redes sociais por causa do kimchi, o vegetal fermentado que os coreanos consomem feito água (e com ela, visto ser apimentadíssimo). O pomo da discórdia foi o reconhecimento, pela Organização Internacional de Padronizações, do copyright chinês de um prato muito parecido — ato que os chineses alardearam como prova de que o kimchi é deles. No Oriente Médio, a briga é pelo homus, pasta de grão de bico que faz parte do cotidiano de árabes e judeus desde a Antiguidade. Israel brande citação do Livro de Ruth para provar que o homus é judeu. O Líbano propôs tirar a prova com um concurso: ficaria com a honraria quem produzisse a maior tigela da pasta. Sua produção, 10 452 quilos de homus (a dimensão do território libanês) entrou para o Guinness, mas não resolveu a disputa.
Na América do Sul, Chile e Peru, países envolvidos em pendengas territoriais centenárias, estenderam sua disputa ao pisco, uma aguardente de uva. Nesse caso, a altercação tem nítido sabor financeiro: peruanos e chilenos pedem, cada um, o reconhecimento de seu direito exclusivo de vender a bebida com esse nome na União Europeia. Duas tentativas deram em nada, mas eles continuam insistindo. “Existe um elemento de marketing importante em jogo. A inspiração vem do espumante, produzido em qualquer lugar, mas que só em uma região da França pode ser chamado de champanhe’”, explica Nojosa. A questão econômica também se misturou à da honra nacional quando Dilma Rousseff e Barack Obama brindaram, em 2012, ao acordo que, nos Estados Unidos, tirou a cachaça da denominação “rum brasileiro”, por se encaixar no grupo das bebidas feitas de cana. Ressentimentos nacionalistas à parte, resta a certeza: gastronomia é cultura.
Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716