Cada vez mais raras, as trufas sofrem com calor e seca – e preços disparam
O resultado para a temporada foi uma colheita reduzida e a dramática constatação de que o aquecimento global pode vir a decretar a extinção da iguaria
De aroma terroso e sabor intenso, as trufas são incensadas na gastronomia pelos traços distintos e pela raridade, que faz com que seu preço fure sem dó qualquer teto de gastos. As mais cobiçadas, como a branca da Itália e a “diamante negro” típica da região de Périgord, na França, são colhidas no outono europeu, prestes a terminar, e o tamanho da oferta depende das condições climáticas. Ao contrário dos cogumelos e outros fungos que se desenvolvem na superfície da terra, as trufas crescem junto à raiz de certas árvores, como o carvalho e a aveleira, em ambiente de sombra e umidade — tudo o que a Europa não teve neste ano de calor escorchante. O resultado para a temporada foi uma colheita reduzida de fungos raquíticos, preços ainda mais estratosféricos e a dramática constatação de que o aquecimento global pode vir a decretar a extinção da iguaria.
Para desgosto dos coletores, figuras tradicionais na Itália e na França que guardam a sete chaves a localização das árvores mais propensas a abrigar trufas em suas raízes e que a cada outubro partem, acompanhados de seus cães bem treinados, para a colheita anual, as secas e ondas de calor dos últimos tempos estão impactando o bioma das úmidas florestas europeias e este ano foi especialmente devastador. Os termômetros cravaram 40 graus na Itália, 42 graus em certas áreas da França e 44 graus em Sevilha e Córdoba, na Espanha — juntos, os três países produziram 90% das trufas comestíveis do mundo em 2019. O calor escaldante e a falta de chuvas afetaram o volume de açúcar e água que os fungos retiram das raízes, e o quilo das trufas brancas bateu em 700 euros (quase 4 000 reais), 50% acima da média. “Quando as chuvas diminuem, o preço aumenta, e o ano passado já tinha sido difícil”, resumiu Mauro Carbone, chefe do Centro Nacional de Estudos de Trufas da Itália, em uma reunião com produtores. “É hora de começarmos a pensar em adiar o início da temporada de outubro para novembro, por causa das mudanças climáticas”, recomendou.
Uma pesquisa da Universidade de Konstanz, da Alemanha, que analisou durante oito anos a produção das trufas de verão (menos nobres e mais abundantes) no próprio país e na Suíça, mostrou que ela é, de fato, extremamente sensível a temperaturas elevadas. Sua produção chega a cair 22% a cada grau acima da média. Em pontos onde o termômetro subiu 3 graus, as trufas sumiram completamente. “A elevação dos extremos de temperatura provavelmente reduzirá a frutificação das trufas de verão em toda a Europa Central”, prevê Brian Steidinger, pesquisador-chefe do estudo, ressaltando que as ondas de calor que se abatiam sobre a Europa uma vez a cada século agora acontecem duas vezes por década. Por causa da mudança, a coleta anual de trufa em Périgord, na França, que chegava a mais de 1 500 toneladas no século XIX, agora fica entre 10 e 50 toneladas. “Enquanto isso, a demanda não para de crescer, o que torna os preços abusivos”, diz Rogério Fasano, empresário do ramo de hotéis e restaurantes de luxo. Fasano lamenta ainda a consequente disseminação dos produtos “trufados”, como azeites, que, segundo ele, “nada têm a ver com trufas frescas”.
Autor de outro estudo sobre a sobrevivência das trufas na Europa, Paul Thomas, especialista em fungos da Universidade de Stirling, no Reino Unido, não vê o futuro com otimismo. “Até 2071, muitas zonas climáticas onde existem trufas vão se tornar insustentáveis. E não poderemos nem tentar irrigá-las, porque a água será escassa”, antecipa. Os coletores apontam um fator extra de preocupação acarretado pelas folhas secas no chão esturricado: é impossível caminhar em silêncio na floresta, o que facilita a localização de seus mananciais secretos pela concorrência. Mostrando que a tendência já vem de um tempinho, o chef Rafa Gomes, do carioca Tiara e do Itacoa, com endereços em Paris e na capital fluminense, viajou à região italiana de Alba em 2019, onde costuma se abastecer de trufas, trazendo uma boa e uma má notícia. Conseguiu, felizmente, comprar a quantidade de sempre. Mas pelo andar da carruagem, quem decidir comprar, pagará mais caro do que nunca.
Publicado em VEJA de 21 de dezembro de 2022, edição nº 2820