Parafraseando o otimista, está na hora ver o copo meio cheio, na esperança de que a pandemia esteja arrefecendo e a vacinação, acelerando. Ou talvez seja mais apropriado dizer que “a taça está meio cheia”. Afinal, o vinho é a bebida do momento — a venda cresceu expressivos 31% em 2020, em comparação ao ano anterior, e continua em alta no primeiro trimestre de 2021. Com os restaurantes fechados ou funcionando com restrições até há pouco tempo, a onda enóloga foi para dentro de casa, deixando as prateleiras de supermercados algumas vezes desabastecidas dos melhores rótulos. No entanto, a solução, como parece ocorrer em todos os segmentos do comércio, veio do digital: prestigiados sommeliers aderiram à moda de apresentar os vinhos a distância, entregando a encomenda e guiando seus comensais por um mundo de sabores e aromas. Ou, em outras palavras, fazendo degustações virtuais.
A festa começa quando os clientes recebem um kit com as bebidas e petiscos para serem desfrutados no conforto do sofá, enquanto o mestre conduz a sessão de degustação, transmitida ao vivo, em horário pré-informado, por plataformas de videoconferência, pelo YouTube ou Instagram. Com grupos reduzidos, é possível interagir bastante com o sommelier. Quase sempre a proposta é entregar garrafas pequenas, pois o que vale é a experimentação de diversos rótulos. Mas o que houve com aquela regra de que os bons vinhos devem ser servidos em garrafas grandes de 750 mililitros? O diretor da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS), José Marcos Medeiros Júnior, explica que o preconceito de tomar vinho em casa, em garrafinhas, simplesmente acabou. “Creio que seja um fenômeno positivo e sem volta”, afirma. Antes da pandemia, Medeiros Júnior ministrava degustações presenciais, que agora são feitas on-line. Em um recente encontro, ele entregou cinco minigarrafas de estilos diferentes, incluindo um importado de Israel, a 57 participantes, além de salame, queijos, torradas e uma geleia para acompanhar, ao custo de 200 reais por pessoa.
O maior desafio é a questão logística. O conteúdo, que é enviado de São Paulo a outros estados geralmente via Sedex, deve ser manipulado e vedado da forma correta, por profissionais especializados, para evitar problemas como a oxidação — ou, em bom português, para que o vinho não azede. A italiana Anna Rita Zanier, que em duas décadas vivendo em São Paulo formou mais de 230 000 pessoas em seus cursos de enogastronomia, também aderiu à moda. Ela realiza cerca de duas lives por semana e aponta como principal vantagem o fim das fronteiras. “Dá para levar conhecimento a pessoas de todo o Brasil, em qualquer dia e horário”, diz a criadora do projeto Vinum Est e que foi a sommelière responsável por servir o papa Bento XVI em sua visita ao Brasil, em 2007. Anna reforça que, hoje em dia, graças à comunicação digital, é possível até mesmo degustar um vinho importado na presença virtual do próprio produtor.
Além do crescimento das vendas já apontado, que ultrapassou 500 milhões de litros no ano passado, outra tendência nesse segmento, que já vinha sendo notada antes da pandemia, é o aumento do interesse das mulheres. O público feminino já se faz presente nos cursos oferecidos pela ABS quase na mesma proporção do masculino. A executiva de tecnologia da informação e enófila Fernanda Sabino é uma das protagonistas desse movimento. Fundadora da Women e Wine, confraria de vinhos voltada para mulheres criada em 2015, ela também expandiu o projeto com a ajuda da tecnologia e com o propósito de levar a cultura do vinho para perto das mulheres. “Não é simplesmente reunir amigas para beber e falar mal dos maridos depois da segunda taça”, diz Fernanda, brincando com o machismo que cerca a degustação de vinhos. Como o elegante Brunello di Montalcino, sua bebida favorita, produzida na região italiana da Toscana, as aulas precisam ser equilibradas. “As pessoas ficaram um pouco cansadas de tantas lives. Portanto, a abordagem precisa ser mais leve, em tom descontraído, mas sem deixar de lado a parte técnica.”
Não há regras sobre o número de participantes: há quem prefira degustações com até setenta pessoas (devidamente silenciadas nos momentos oportunos) ou reuniões com até dez integrantes, um ambiente mais próximo ao de um jantar em família, no qual a interação é bem mais tranquila, com sessões de perguntas e respostas. As degustações de vinhos tintos europeus ainda são as mais procuradas, mas, segundo Paulo Brammer, fundador da plataforma de educação etílica Eno Cultura, com quase 45 000 seguidores, os cursos sobre vinhos brasileiros têm se destacado de forma surpreendente. “Nosso público originalmente tem entre 35 e 50 anos. Porém, com investimento em novas ferramentas, temos conseguido nos comunicar com um pessoal mais jovem”, ressalta. Seja branco, seja tinto, importado ou nacional, sozinho no sofá ou à mesa com amigos, a onda de degustações on-line oferece prazeres antes inimagináveis.
Publicado em VEJA de 02 de junho de 2021, edição nº 2740