Livro decodifica a cozinha inventada nas cantinas e restaurantes de SP
A gastronomia da região seria uma tradução das receitas trazidas ao Brasil pelos imigrantes italianos nos séculos XIX e XX
Não há atividade humana mais reveladora da história de uma cultura do que a gastronomia. Cozida de sabores e odores, regada a viagens entre os continentes, condimentada por idiomas, é como uma obra aberta, em permanente reconstrução. Não por acaso, nas metrópoles construídas por imigrantes, o que sai das cozinhas ganha cores extraordinárias. O jornalista gaúcho J.A. Dias Lopes, radicado há mais de cinquenta anos em São Paulo, com um período de três anos como correspondente de VEJA em Roma, especializou-se em enxergar a vida por trás de um prato. Em seu mais recente livro, Oriundi — Histórias e Receitas da Cozinha Ítalo-Brasileira de São Paulo, ele decodificou a linhagem de receitas servidas na capital paulista, inigualável e de reconhecimento internacional. “É uma gastronomia com o DNA italiano, mas personalidade ítalo-paulistana”, define.
Não se trata de deturpação do que veio da Itália, e sim de adaptação, de estabelecimento de uma personalidade singular. Eis a beleza do trabalho de Dias Lopes. Para salientar a relevância civilizatória do forno e fogão, ele usou como epígrafe de seu livro uma frase do industrial, mecenas e político ítalo-brasileiro Francisco Antônio Paulo Matarazzo Sobrinho, o Ciccillo Matarazzo (1898-1977): “Se o Brasil é filho de Portugal, São Paulo é filha da Itália”. Assim é, sobretudo à mesa.
A aventura narrada no saboroso volume — apoiado na primeira edição pelo Colégio Dante Alighieri e que depois chegará às livrarias com o selo da editora Anfora — daria um filme de Martin Scorsese, se fosse possível trocar a Pauliceia por Nova York. Os imigrantes que desembarcavam no fim do século XIX e início do XX no Porto de Santos, a caminho da capital, traziam na memória e em anotações os ingredientes e quantidades estabelecidos pelas nonnas e nonnos que ficaram na Europa. Como a invenção é mãe da necessidade, deu-se a revolução. A gênese do movimento é a chamada cozinha “cantineira”. O nome se deve ao fato de, originalmente, ela ter surgido nas cantinas.
Como a clientela aumentava, o jeito foi entreter com petiscos quem aguardava a vez de ser atendido. A primeira a nascer sob esse formato foi a Cantina Capuano, em 1907, no Bixiga, o célebre bairro paulistano que abrigou boa parte dos italianos que desembarcaram na capital. E dá-lhe pão de linguiça e os antepastos sardella, feita com sardinha, e alicella, uma magnífica mistura de aliche e temperos que casa com perfeição com fatias de pão italiano, claro. As massas também passaram por adaptações que resultaram em pratos com assinatura paulistana, ainda que os nomes não sugiram essa ideia. Incluem-se na categoria o talharim à parisiense, o fusilli com braciola e o cappelletti à romanesca, invenção do restaurateur Giovanni Bruno, que trabalhava no célebre restaurante Gigetto, no centro de São Paulo. Ele dividia espaço e honras com outras catedrais como o Famiglia Mancini, o Massimo e as casas do Grupo Fasano.
E as pizzas, é claro, merecem capítulo à parte. Na capital paulista, a receita original dos napolitanos ganhou várias versões, como a portuguesa, criação das bandas de cá. “É uma culinária que lida com a simplicidade e o refinamento”, resume Dias Lopes. Os aromas são arrebatadores e os sabores, divinos. Mas o que a faz grande, agora traduzida com maestria e elegância, é sua força antropológica. Giustissimo!
Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813