No clássico A Fisiologia do Gosto, obra fundamental da gastronomia publicada em 1825, o advogado e cozinheiro francês Jean-Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826) resumiu a relevância histórica da alimentação: “O prazer da mesa pertence a todas as épocas, todas as condições, todos os países e todos os dias”. É reflexão delicada e precisa em torno do poder da comida como termômetro cultural do ser humano, desde sempre. Os banquetes e as reuniões em torno dos pratos tiveram, ao longo da história, papel seminal. Mas qual seria, afinal, o sabor das receitas ancestrais? Um novo movimento tenta responder a essa indagação. Grupos de arqueólogos de diferentes partes do mundo têm se debruçado sobre evidências químicas e documentais para reproduzir antigas refeições. São os caçadores da comida perdida.
Um dos exemplos mais recentes vem do Japão. Liderados pelo professor Takayuki Mifune, pesquisadores da Universidade de Saúde de Tóquio recriaram, em laboratório, a receita do katsuo irori, um caldo feito com peixe bonito e temperos que ajudavam a preservar as iguarias. Era um preparo comum durante o período Nara, entre 710 d.C. e 794 d.C. Para dar maior autenticidade aos processos, os cientistas usaram apenas instrumentos parecidos com os daquele período. O resultado, extraordinário, do ponto de vista estético e de gosto, é uma aula de avanços e recuos da civilização.
A arqueologia culinária não fica restrita às comidas. Há uma série de investigações em andamento com bebidas a partir de receitas milenares. O americano Patrick McGovern, do Museu da Universidade da Pensilvânia, conhecido como o “Indiana Jones dos vinhos e cervejas”, tem se dedicado a analisar compostos milenares. Em parceria com a cervejaria Dogfish Head, de Delaware, nos Estados Unidos, ele reproduziu, em escala comercial, algumas de suas descobertas, como o Chateau Jiahu, um fermentado de arroz, mel, uvas e outras frutas encontrado em Jiahu, na China, e datado de 7 000 a.C. Ou então o rótulo conhecido como Midas Touch, uma bebida a meio caminho entre o vinho, a cerveja e o hidromel, elaborada a partir de evidências rastreadas em recipientes de bebidas com mais de 2 700 anos de idade, identificadas na tumba do rei Midas, na região da Anatólia.
Não se trata de fenômeno exclusivamente internacional. No Brasil, a gastronomia do passado tem conquistado adeptos. É um modo de beber das tradições de modo a preservá-las. Em São Paulo, o restaurante Lobozó busca oferecer pratos da culinária caipira da região histórico-cultural conhecida como Paulistânia, que engloba o estado de São Paulo, partes do Paraná, do Triângulo Mineiro, o sul de Minas Gerais e de Goiás, o estado de Mato Grosso do Sul e partes de Mato Grosso. O cardápio oferece releituras de pratos como o lobozó, que dá nome ao estabelecimento, um mexido que leva carne-seca e jiló, além de frango caipira e cuscuz. “São pratos que contam muito de nossa trajetória ao longo dos séculos”, diz o chef Gustavo Rodrigues, responsável pela cozinha do restaurante. “O caipira consumia muito porco e frango, animais de quintal, mais baratos, porque o gado era um produto a ser vendido.” O pulo do gato, para chamar a atenção da clientela atual: a apresentação dos pratos é moderna e vistosa. “Muitas pessoas têm memórias dos pratos que fazemos, de uma viagem ao interior ou de uma receita de família”, diz Rodrigues. “Apresentá-los de maneira diferente, sem perder a identidade, é o modo de respeitar as origens sem perder o contato com a realidade de hoje.”
A proposta do Lobozó surgiu a partir do livro A Culinária Caipira da Paulistânia: a História e as Receitas de um Modo Antigo de Comer (ed. Fósforo), escrito pelo sociólogo Carlos Alberto Dória e pelo cozinheiro Marcelo Corrêa Bastos, sócios do restaurante. A partir de um minucioso levantamento em livros e documentos amarelados pelo tempo, os autores conseguiram traçar os caminhos percorridos pela comida caipira. O resultado combina à perfeição com os humores contemporâneos. “Na gastronomia a diversidade também é fundamental”, diz Carlos Alberto Dória. “Há, por exemplo, a tradição do fundão de Minas e a desconstrução culinária do século XXI, e elas não são excludentes.” A mistura desses ingredientes de puro conhecimento funciona como um olhar para o retrovisor da humanidade. Afinal, somos e seremos o que comemos.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874