Saudada desde sempre, e com razão, como a melhor do planeta, a culinária francesa abriu uma brecha na sua posição de excelência no panteão dos fogões quando um grupo de chefs criativos pôs em prática, nos anos 1960, a nouvelle cuisine, desafiando a culinária clássica com pratos mais leves, mais delicados e muito mais bonitos. Logo imitada no mundo inteiro, a escola deu chance de ascensão a discípulos fora da França, cozinheiros que viriam a se destacar pela excepcional ousadia na reinvenção da experiência gastronômica. E alguns deles derivaram mais tarde para uma “nova nouvelle cuisine”. O problema é que, ao que parece, é impossível sustentar o padrão de qualidade dos gênios desta inovadora vertente. Prova disso é o recente anúncio do chef dinamarquês René Redzepi, o mais brilhante de seu tempo, de que fechará em 2024 o celebrado Noma, restaurante de Copenhague considerado o melhor do mundo, responsável por colocar a culinária nórdica, pela qual ninguém dava um centavo, par a par com Paris, Nova York e Tóquio.
Aclamado pelos pratos que remetem às tradições e aos ingredientes locais — como miolo de rena com pólen de abelha e tartare de carne curado em algas marinhas e salpicado de formigas típicas das regiões cobertas de pinheiros —, o restaurante de Redzepi, 45 anos, brilhou cinco vezes no topo da lista de melhores do mundo da revista Restaurant, sendo a última em 2021, quando saiu da competição e foi alçado à categoria hors-concours. Causou, portanto, enorme surpresa quando o chef, em entrevista ao jornal The New York Times, anunciou que no ano que vem vai transformar o Noma em um “laboratório gastronômico” de produtos para sua operação e-commerce, com eventuais reedições no estilo pop up espalhadas pelo mundo. O restaurante se tornou “insustentável, financeira e emocionalmente”, justificou Redzepi. Antes dele, o espanhol Ferran Adrià, mestre da gastronomia molecular e suas espumas, fechou seu El Buli, na Catalunha, em 2011, também atolado em problemas financeiros, e inaugurou três anos depois um “centro de criatividade”.
Os dois casos demonstram que não há balancete de restaurante que resista quando o chef é perfeccionista e ultraexigente, ainda que os preços cobrados extrapolem qualquer limite — no Noma, o menu de vegetais, um dos três oferecidos anualmente, custa (no almoço) 420 dólares por pessoa, mais 250 dólares se acompanhado de vinho. Redzepi faz questão de que sua equipe colha os ingredientes que crescem livres nas florestas e bosques dinamarqueses e que toda a fermentação seja feita in loco, o que demanda tempo e dinheiro e submete a cozinha aos altos e baixos da sazonalidade. Também encolheu seu fluxo de caixa o fato de, depois de muita pressão, ter começado a remunerar as levas de estagiários que aceitavam cumprir de graça (quem não quer ter um Noma no currículo?) jornadas extenuantes de até dezesseis horas de trabalho.
Ao anunciar o fechamento, reconheceu que o trabalho é exaustivo e jogou a toalha: compensar quase 100 funcionários e, ao mesmo tempo, manter o altíssimo padrão é inviável. “Temos de repensar totalmente nossa indústria. Do jeito atual é muito difícil. Precisamos trabalhar de uma forma diferente”, afirmou, sem apresentar receitas. “O Noma desafiou os conceitos da alta gastronomia ao dar as costas à cozinha francesa, sem quebrar, no entanto, a formalidade de uma experiência de elite”, analisa Jonatan Leer, pesquisador de cultura alimentar na Universidade de Aarhus, na Dinamarca. Junção das palavras nordisk (nórdico) e mad (comida), o Noma abriu caminho para uma revolução a partir de 2004, com a publicação do Manifesto da Nova Culinária Nórdica, um documento de dez pontos assinado por doze chefs que pretendia definir a nova identidade gastronômica dos cinco países (Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e Islândia) e três regiões autônomas (Groenlândia, Ilhas Faroé e Åland) daquele pedaço da Europa.
Os princípios básicos do manifesto ressaltam a importância do uso de ingredientes locais e a promoção de produtos regionais na confecção de porções pequenas e surpreendentes, servidas com excepcional apuro — a apresentação se inspira na estética escandinava e tem lugar de honra na confecção dos pratos. Depois do Noma, vários restaurantes surgiram reproduzindo, de forma mais ou menos dogmática, tais ideais e reafirmando a influência da cozinha nórdica. No ano passado, a lista dos melhores do mundo foi liderada pelo Geranium, também de Copenhague, e os países da região contam hoje com 74 restaurantes estrelados pelo Guia Michelin e incluídos no roteiro do muito lucrativo turismo gastronômico. “Pessoas do mundo todo estão vindo provar a excelência culinária da região”, diz Nicklas Neuman, professor do Departamento de Estudos Alimentares da Universidade de Uppsala, na Suécia. A terra dos bárbaros vikings comendo com a mão nacos de carne mal cozida nos filmes virou, quem diria, meca de refinados gourmets.
Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825