Praticada em mosteiros budistas, a tradição culinária conhecida como shôjin enseja uma experiência alimentar transcendente. Sem o uso de carne ou ingredientes provenientes de animais, ela preza pelo total aproveitamento dos vegetais, do miolo à casca, além de equilibrar detalhes como cores e até o material do prato em que se serve. A filosofia vinda do Oriente encontrou um lar na agitada Manhattan, em Nova York. Para comer no exclusivo restaurante japonês Kajitsu, adepto dessa corrente requintada da cozinha vegana, o cliente deve enfrentar uma fila de até um mês antes de desfrutar o menu completo por 120 dólares (pouco mais de 600 reais). Conduzido pelo chef Hiroki Abe, e um dos poucos sem elementos de origem animal a ser condecorados com uma estrela do Guia Michelin, o restaurante evidencia a força da implacável onda vegana: mais que uma dieta, essa renúncia radical dos produtos de origem animal ganhou vigor no mundo todo — e nada indica que seja um modismo passageiro. A prova maior de que se impôs é a rendição da alta gastronomia às suas idiossincrasias.
O estilo de vida vegano designa as pessoas que expandiram a lista de restrições dos vegetarianos: se estes limam do cardápio qualquer tipo de carne, o vegano também não consome ovos, leite e derivados, além de banir cosméticos testados em bichos, roupas de couro e lã e até vinhos que usam proteína animal no processo de clarificação. Não é só um hábito alimentar, mas uma verdadeira postura política diante da alimentação. Levantamento feito pela consultoria inglesa Finder mostra que 2,7 milhões de pessoas no Reino Unido varreram produtos de origem animal do menu. Nos Estados Unidos, país que popularizou os suculentos hambúrgueres, 3% dos habitantes (9,6 milhões de pessoas) abraçaram a prática. Por aqui não é diferente. Cerca de 30 milhões de brasileiros (ou 14% da população) seguem, em maior ou menor grau, uma alimentação que elimina a carne da dieta, segundo o Ibope.
Restaurantes renomados mexeram os pauzinhos para acomodar essa demanda crescente com pratos em que os vegetais não só são os protagonistas, como devem ser frescos e passar longe da indústria de processados. No Tuju, restaurante paulistano com duas estrelas Michelin, o chef Ivan Ralston prepara uma requisitada entrada que leva couve-flor assada com molho romesco tipicamente catalão, além de cebola na brasa e acelga fermentada ao modo coreano kimchi. Ralston, aliás, almeja abrir um restaurante 100% vegano. “É uma inovação recente. As receitas estão se aprimorando e logo chegarão ao esplendor.”
Apesar de o Brasil carregar consigo a fama do churrasco, a base da alimentação nacional já ostenta pratos bem veganos. Como o casamento de arroz, feijão, farofa e vinagrete, os tradicionais legumes grelhados na brasa e, no terreno das tentadoras sobremesas, geleias de frutas, cocadas, paçocas — e por aí vai. Tanto é que, para chefs como Felipe Bronze, apresentador da Record e profissional por trás do carioca Oro, duas estrelas Michelin, a inclusão de pratos veganos em seu menu não chega nem sequer a ser uma preocupação: “Em termos de sabor, o reino vegetal é um prato cheio”.
Se a alta culinária já se rendeu ao crescente apelo do veganismo, cientistas ainda se dividem sobre o tema. O consumo de carne em grandes quantidades é associado à evolução do cérebro de nossos ancestrais de milhões de anos atrás. Existe, então, a preocupação de que uma dieta sem proteína animal possa interferir na capacidade cognitiva humana. Não há nenhum estudo que comprove — ou invalide — essa teoria. O único consenso é sobre a adoção de uma dieta vegana precisar, imprescindivelmente, de acompanhamento médico, para que não haja carência de nutrientes como a vitamina B12, o cálcio e o ferro, o que pode desencadear anemia e até fraturas. “É indicada a ingestão de leguminosas associadas a um alimento rico em vitamina C para a absorção”, diz a nutricionista Marcela Haddad. Quando equilibrada, a dieta vegana comprovadamente traz benefícios, desde a prevenção de doenças cardíacas e diabetes até a maior resistência muscular e disposição física — até por isso, vem conquistando atletas. O veganismo chegou para ficar — e veio para abalar os conceitos da alta gastronomia.
Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720