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Processos, polêmicas e suicídios: o drama das estrelas Michelin

Um dos melhores chefs da atualidade, Marc Veyrat entra na Justiça contra o guia e põe fermento no eterno debate sobre os excessos da bíblia da gastronomia

Por Fernanda Thedim
Atualizado em 4 jun 2024, 15h20 - Publicado em 25 out 2019, 07h00

O ano era 1671, e o admirado chef francês François Vatel, a quem é atribuída a criação do chantili, organizara três dias de banquetes que teriam como comensal Luís XIV, o todo-­poderoso Rei Sol. Vatel não conseguia pregar os olhos. No jantar, havia faltado assado em virtude de um terrível erro de cálculo dele e o atraso na entrega do peixe para o dia seguinte o assombrava. A agonia virou tortura e, segundo uma versão muito disseminada da história, ele decidiu tirar a própria vida (sem nem ficar sabendo que o peixe, enfim, chegara). A trágica passagem ilustra a panela de pressão que os grandes cozinheiros sempre precisaram manejar. Bem depois de Vatel, ela entraria em ebulição com o surgimento na França do guia Michelin, a bíblia da gastronomia, em 1900. Ao conferir estrelas (de uma a três) a mesas de mais de 25 países, do Brasil inclusive, o livreto já catapultou chefs à fama e esfarelou reputações. Agora, foi arrastado para o centro de um duelo que tem do outro lado do ringue o francês Marc Veyrat, venerado por cavucar ingredientes nos Alpes e lhes dar leitura singular.

Aos 69 anos, sempre com seu inconfundível chapéu de astro de rock dos anos 80, Veyrat, tido como um dos grandes chefs em atividade, entrou há um mês na Justiça contra o Michelin. Quer saber “as razões exatas” de o guia ter lhe garfado, na recém-lançada edição, uma das três estrelas que cintilavam à porta do seu La Maison des Bois, elegante salão para trinta pessoas com vista para os nevados picos do Mont Blanc e menu a 395 euros (cerca de 2 000 reais). Conhecida por mimos para o paladar como “a loucura do coração de trufa de ovo invertido” (só quem come entende), a casa havia cravado a cotação máxima em 2018. “Sou o único chef na história que conseguiu uma terceira estrela em um ano e a perdeu no seguinte. Você pode imaginar a vergonha que isso representa? Estou em depressão desde que recebi a notícia”, escreveu em carta que fez tilintar os talheres no mundo da alta gastronomia — e continuou: “Tenho problemas para dormir, quase não como mais, choro sem motivo, me sinto mal o dia todo”.

Mitsuhiro-Araki-2019
E NÃO SOBROU NENHUMA – Araki: o japonês de Londres que leva seu nome perdeu as três estrelas quando ele saiu (./.)

Assim que foi informado do rebaixamento, Veyrat foi à sede do Michelin, em Paris, cobrar explicações. Ouviu que uma das razões para ter deixado o grupo de elite dos fogões foi o uso de cheddar em um suflê. Ficou em choque. Segundo ele, a receita leva três queijos alpinos da melhor cepa — reblochon, beaufort e tomme. Jamais cometeria o sacrilégio de acrescentar cheddar à mistura. Veyrat pôs então em dúvida se os inspetores do guia haviam de fato visitado o restaurante. Ele pede à Justiça que apresentem os comprovantes de pagamento das refeições e exige que o La Maison des Bois seja excluído da publicação. Novo diretor internacional dos guias, Gwendal Poullennec garante que a casa foi avaliada “várias vezes no ano” e se recusa a tirar o estabelecimento do livro. “Trabalhamos para os clientes, e não para os restaurantes. As estrelas não são de propriedade dos chefs”, justifica. A primeira audiência entre as duas partes está marcada para 27 de novembro.

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ARTE-MICHELIN
(./.)

Veyrat, que já foi dono de três estabelecimentos com três estrelas cada um (dois ele fechou), não briga à toa. A história vem sendo implacável com quem fica de fora da constelação. Em 2013, ao ver subtraídas de uma única tacada as duas estrelas de seu restaurante em Nova York, o escocês Gordon Ramsay resumiu o dissabor: “Foi como perder uma namorada. Você fica esperando que ela volte”. As estrelinhas nunca retornaram, e a casa acabou fechando. Em 2019, foi a vez de o The Araki, de Londres, ter de engolir a humilhação. As três estrelas do requintado japonês evaporaram-se de um ano para o outro depois da saída do chef Mitsuhiro Araki, que voltou para sua Tóquio natal. A conta deve vir depois. “O faturamento de um restaurante estrelado aumenta de 30% a 40%”, calcula Francis Attrazic, presidente da Association Française des Maîtres Restaurateurs, que congrega os principais empresários do ramo na França, país número 1 em estrelas (veja o quadro). “Evidentemente, perder uma estrela é terrível para o chef, mas para o negócio é bem pior”, avalia Felipe Bronze, à frente do Oro, no Rio de Janeiro, condecorado com duas estrelas na edição de 2019. Há três anos sob o escrutínio do Michelin, o Brasil ainda não tem um três-­estrelas para chamar de seu, privilégio hoje de 114 restaurantes no mundo.

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TRAGÉDIA – Loiseau (à esq.) e Vatel: dois mestres que não suportaram a pressão e tiraram a própria vida (SAMIRA BOUHIN/AFP)

Antes de Veyrat, mais gente já havia batido panela às portas do Michelin. Em 2003, um ex-inspetor do guia, Pascal Rémy, abalou os alicerces ao declarar em livro que mais de um terço dos restaurantes franceses listados só atingia a avaliação máxima porque eram considerados “intocáveis”. O suicídio de dois chefs franceses às voltas com o tormento de perder suas estrelas também ingressou no capítulo sem nenhum glamour: o primeiro foi Bernard Loiseau, em 2003, que inspirou a animação Ratatouille e o livro O Perfeccionista, e o segundo, Benoît Violier, em 2016. Criada pela fabricante de pneus Michelin para fornecer endereços de oficinas e postos a motoristas que cruzavam as estradas da França, a publicação embrenhou-se apenas mais tarde no ramo de hotéis e restaurantes — que passou a avaliar com base em critérios como qualidade dos ingredientes, harmonia de sabores, personalidade e regularidade da cozinha, relação custo-benefício.

Régua tão elevada (e para muitos demasiado tradicional) impõe aos donos de constelações uma rotina cara e estressante, voltada para a manutenção da honraria. E isso já não faz mais sentido para uma ala que, acredite, até pede para devolver estrelas pelo peso que elas embutem. “Os grandes restaurantes caros se tornarão cada vez mais raros, enquanto os de boa cozinha e preço competitivo ganharão espaço”, afirma a VEJA o estrelado Gastón Acurio, o nome mais vistoso da culinária peruana moderna. Em 2017, o francês Sébastien Bras, filho de Michel Bras (que deixou à humanidade o bolo morno de chocolate, hoje mundialmente conhecido como petit gâteau), suplicou que fossem removidas as três estrelas de seu Le Suquet, no sul da França. Conseguiu. “Elas ajudaram a construir nossa reputação, mas prefiro me libertar da pressão”, explicou Bras, cujo grito de independência soou arrogante para a imensa maioria que faz de tudo para estar na constelação. Como resumiu seu conterrâneo Alain Ducasse (dono de dezenove delas), “é lógico que podemos viver sem as estrelas, mas vivemos bem melhor com elas”.

Publicado em VEJA de 30 de outubro de 2019, edição nº 2658

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