Acompanhar a alimentação de famosos e anônimos vira onda nas redes
O fenômeno tem o poder de mudar os hábitos à mesa — e pesa a favor da comida saudável
Os programas capitaneados por chefs venerados que produzem alquimias na cozinha já vêm há tempos arrastando multidões para a frente da TV. Aí a internet chegou com tudo e deu nova envergadura ao hábito de assistir ao preparo de receitas — um território que rapidamente se multifacetou: caiu no gosto das pessoas ver as outras, muitas delas anônimas, comendo e discorrendo sobre suas rotinas alimentares na rede. Só a hashtag #WhatIEatinaDay (o que eu como em um dia) registra mais de 10 bilhões de visualizações, fenômeno que exibe a uma plateia global do mais espartano sujeito e seu saudável cotidiano de refeições à moça que preenche os dias à base de fast food.
O que se sabe agora é que o sistemático consumo desses vídeos vem influenciando em escala planetária a relação das pessoas com a comida. E não se trata apenas do que comemos, mas também das porções que colocamos no prato e até da cadência com que levamos o alimento à boca. “Alimentação é um comportamento fortemente social e detectamos nesse campo uma enorme tendência de a espécie humana imitar o que observa à sua volta”, afirma Jane Ogden, professora de psicologia da saúde na Universidade de Surrey, no Reino Unido.
Uma nova frente de estudos tem investigado o cérebro para decifrar como se dá esse mecanismo que acaba nos fazendo ansiar o prato do vizinho. A resposta da ciência está nos chamados neurônios-espelho, responsáveis por observar, processar e replicar padrões sociais, que se tornam modelos para regular emoções e tecer interações sociais. As refeições se inserem nesse contexto — copiar o colega ao lado é um gesto social, de aproximação, que se desenrola como resultado de uma frenética atividade da mente. As mais recentes descobertas sobre o tema apontam que o que ocorre ao vivo e em cores se passa em elevadíssima potência quando alguém está assistindo à comilança alheia no mundo virtual.
A boa notícia vem de um vasto levantamento conduzido pela Universidade Aston, no Reino Unido. Ao captar a influência das redes nas escolhas à mesa, a pesquisa constatou que existe uma tendência de as pessoas abraçarem mais os bons do que os maus exemplos — o lado iluminado dos legumes, verduras e frutas vence com uma margem de 15% o dos hambúrgueres e coxinhas, ainda que eles exerçam inequívoco magnetismo. “Eu me inspirei no cardápio de gente que acompanhava na internet para mudar totalmente minha relação com a comida, e foi para melhor”, conta a hoje saudável estudante Gabriela Sahade, 17 anos, que não aguentou: passou ela também a compartilhar seu dia a dia alimentar nas redes, acumulando inacreditáveis 230 000 seguidores.
Mas que ninguém se engane: há muito, muito mesmo, o que se deletar nesse nicho que só faz crescer e aparecer. No rol do que é descartável se encontram os mukbangs, vídeos de ingestão excessiva, veloz e até grotesca de comida que se popularizaram no YouTube e em canais de streaming na Ásia. Fazem tamanho barulho que o governo chinês, liderado por Xi Jinping, decidiu bani-los da internet, justificando que podem conduzir os jovens a comer além da conta e incentivar o desperdício. A iniciativa foi ancorada em uma lei que determinou a varredura de sites e apps que disseminam a prática — os desobedientes pagam multa de mais de 1 000 dólares. Pesquisadores da faculdade de medicina da Universidade Nacional de Seul rastrearam pessoas que fielmente assistem aos vídeos mukbang e concluiu que 98% tiveram seus hábitos alimentares alterados: uns, com os olhos vidrados na tela, sentiam-se estimulados a comer fora de hora; outros tratavam de copiar pratos desprovidos de nutrientes na refeição seguinte. Houve inclusive registro de ganho de peso na amostra analisada. “Imagens muito apelativas de comida podem ser irresistíveis, provocando no cérebro efeito semelhante ao experimentado pela pornografia”, compara o neurocientista Paul Smeets, da Universidade de Wageningen, na Holanda.
A maior parte dos hábitos humanos é adquirida na infância, especialmente até os 5 anos de vida, mas o processo de aprendizado por meio de exemplos nunca cessa e contém um claro componente cultural. Isso vale para a alimentação. “É o que explica as diferenças de paladar entre japoneses e brasileiros e o fato de casais engordarem ou emagrecerem juntos”, explica a britânica Jane Ogden. A profusão de programas e vídeos voltados para culinária deságua em estímulos visuais que põem o cérebro para trabalhar, desencadeando uma ativa produção de hormônios que abrem o apetite. Em setembro, quem deu gás ao fenômeno mundo afora foi a americana Emily Mariko, que cativou milhões de seguidores com uma receita simples de arroz com salmão desfiado cujo vídeo viria a ser reproduzido milhares de vezes, um daqueles sucessos instantâneos difíceis de decodificar. Só de olhar, deu fome a muita gente. “Assim que vemos a comida, ativamos mecanismos fisiológicos para iniciar o processo de digestão”, diz Maria Luiza Petty, especialista em nutrição e comportamento alimentar. Que tantos e variados estímulos conspirem a favor de um bom prato.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773