É comum, hoje, comprar um produto no supermercado e olhar o prazo de validade — contudo, as minúsculas informações nutricionais presentes nas embalagens acabam sendo deixadas de lado pelos consumidores. Assim, sem saber direito o que está escolhendo, muita gente leva para casa itens carregados de sódio, açúcar e gordura saturada, nutrientes ligados ao desenvolvimento de doenças crônicas, como obesidade, diabetes e problemas cardiovasculares. Em 9 de outubro, entra em vigor uma medida que pode ajudar na seleção de alimentos mais saudáveis, o que, espera-se, contribua para deter a ascensão dessas enfermidades. Nessa data, começarão a aparecer nas prateleiras os primeiros produtos com o novo modelo de rotulagem que traz uma lupa chamando a atenção para o alto teor dos três nutrientes (veja abaixo). A ação faz parte de um movimento mundial por maior transparência sobre os dados nutricionais de alimentos industrializados.
As discussões sobre o assunto começaram em 2010. No Brasil, o debate foi iniciado um pouco mais tarde, há oito anos, e culminou em uma consulta pública, em 2018, coordenada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Foram recebidas 82 000 contribuições. A indústria participou de todo o processo. “Defendemos a ideia de que a alimentação seja cada vez mais saudável”, diz João Dornellas, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos. Dois anos depois, foi publicada a resolução determinando as mudanças. Além da obrigatoriedade de colocar alertas na frente das embalagens quando houver sódio, gordura saturada ou açúcar adicionado em excesso, foi decidida a padronização da tabela nutricional, na parte de trás, para que ficasse mais legível: ela terá letras pretas e fundo branco.
Chegar ao padrão agora adotado aqui e em outros países foi uma longa travessia. Uma das primeiras experiências aconteceu na Austrália, em 2014. Uma escala de 0,5 a 5 estrelas passou a figurar nas embalagens, sendo logo chamadas de “estrelas da saúde”. Choveram críticas. Primeiro porque a adesão da indústria era voluntária e a avaliação era feita sobre a composição geral do produto, de modo que a presença de um nutriente benéfico, como fibras, poderia salvar um ultraprocessado da baixa pontuação.
A proposta mais robusta e que logo atraiu o interesse de pesquisadores do tema despontou no Chile, em 2016: uma lei determinou a adoção do selo em formato de octógono com a expressão direta “alto em” para apontar índices excedentes de gorduras saturadas, calorias, sódio e açúcar. No documento de apresentação, divulgado na época pelo Ministério da Saúde chileno, o país era apontado como o principal consumidor de bebidas açucaradas per capita por dia no mundo e a rotulagem tinha o objetivo de interromper a escalada da obesidade e de outras doenças associadas, como o diabetes. Os resultados apareceram rápido. Um estudo publicado no ano passado comparou o período antes da norma, no ano de 2015, até o fim do primeiro ano da medida em vigor, em 2017, com base nas compras de 2 300 famílias. Houve queda de 24% na aquisição de produtos calóricos; de 37% em relação àqueles com alta concentração de sódio; e de 27% dos que possuíam grande quantidade de açúcar adicionado.
Antes da mesmo da divulgação de estudos sobre a experiência chilena, países latino-americanos começaram a aprimorar e implementar suas propostas. “Há uma onda regional. Argentina, Uruguai, Peru e Colômbia estão discutindo como aprimorar os meios de informação ao consumidor”, diz Ana Paula Bortoletto, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo. O fenômeno tem sido estudado de perto por pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, que mantêm um mapa atualizado das medidas implementadas em diferentes partes do mundo. A adoção da rotulagem frontal no Brasil, também monitorada pelo grupo americano, é considerada um primeiro passo, mas ainda com desafios a ser enfrentados. Professora de nutrição da universidade, Lindsey Smith Taillie considera que designers semelhantes a placas de “pare” ou os que recomendam a redução de consumo de determinados nutrientes são mais eficazes do que as lupas. Além disso, a pesquisadora defende a adoção de ações para restringir as propagandas duvidosas. “Se as pessoas ainda são bombardeadas com marketing enganoso, é difícil fazer escolhas saudáveis”, disse a VEJA.
Decerto, a decisão por produtos mais adequados exige a aplicação de medidas conjuntas, de rótulos legíveis e compreensíveis a educação alimentar dentro de casa. Está no simples ato de escolher o melhor produto boa parte da essência de uma saúde melhor ou pior no futuro — além do empenho em atividades físicas. De acordo com a OMS, a cada dois segundos morre uma pessoa com menos de 70 anos por uma doença crônica associada a uma dieta ruim. Por isso a insistência para que sejam realizadas as trocas alimentares, capazes de mitigar prejuízos ao bom funcionamento do corpo em menos de uma década. No México, onde a mudança da rotulagem entrou em vigor em 2019, uma estimativa publicada na revista científica Plos Medicine mostrou que, em cinco anos, a prevalência de obesidade no país pode cair 15%, o que significa uma queda de 1,3 milhão de casos e economia de 1,8 bilhão de dólares em gastos com a doença. Trata-se de uma diminuição significativa e reveladora de quanto olhar com mais atenção o rótulo do que se compra faz bem.
Publicado em VEJA de 5 de outubro de 2022, edição nº 2809