Novos estudos reforçam a urgência de diminuir sal e açúcar na dieta
E essa orientação não se restringe a pessoas que já têm hipertensão ou diabetes. É questão de vida ou morte para todos
Durante 5 milhões de anos, os ancestrais dos seres humanos não souberam o que era adicionar sal à comida. O contato com o açúcar, por sua vez, se dava exclusivamente pela coleta e ingestão de frutas. Ao longo da evolução da nossa espécie, o Homo sapiens aprendeu a extrair e produzir ambos os ingredientes, que se tornaram moeda de troca até cair na boca do povo, popularizados. O sal, que está na origem do termo “salário”, foi crucial para a conservação das carnes quando não havia refrigeração. E, há coisa de 5 000 anos, começou a se tornar um intensificador de sabor. Mais recente, o uso culinário do açúcar se expandiu na era das navegações — e foi motor, inclusive, da economia colonial brasileira. Mas a evolução biológica não acompanha a evolução cultural. Em outras palavras, o corpo humano não se desenvolveu para usufruir uma abundância de comida, especialmente do salgado e do doce. Em um mundo em que o acesso ao sal e ao açúcar é fácil e o apetite por eles, desenfreado, o exagero no consumo cobra seu preço na escala de um problema de saúde pública.
Onipresentes, os dois nutrientes dão as caras nas pitadas e colheradas que adicionamos aos comes e bebes e estão embutidos numa porção de alimentos industrializados. Ocorre que a ciência reúne provas contundentes ligando ambos os itens ao aumento na prevalência de doenças como diabetes, obesidade e câncer. É assunto urgente. Nos últimos dois meses, entidades e pesquisadores respeitados revisaram estudos e lançaram apelos para que a indústria e a população reduzam o uso dos ingredientes. Trata-se de questão de vida ou morte no longo prazo. E, diferentemente do que se pregava antes, esse cuidado deve ser adotado por todos, e não apenas por quem já está com a pressão ou a glicemia nas alturas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) soou o alerta sobre o sal diante do fracasso iminente de que seus 194 países-membros consigam diminuir em 30% o sódio adicionado aos alimentos até 2025, compromisso firmado em 2013. Em relatório recém-lançado, aponta que apenas 5% dos integrantes implementaram políticas de redução obrigatória — o Brasil entre eles, felizmente. Mas a missão, hercúlea por si só, se estende por aqui: ingerimos, ainda, praticamente o dobro de sódio do que é recomendado diariamente. A OMS defende a ideia de que o consumo global médio, hoje na casa de 11 gramas por dia, tenha de cair pela metade (veja no quadro). Para que as metas sejam cumpridas, é preciso tirar do papel um compromisso coletivo, envolvendo a adequação de grandes empresas, o cumprimento de novas regras de rotulagem e a conscientização da sociedade.
A questão é que o atraso ou a negligência na adoção dessas medidas têm repercussões em termos de qualidade e expectativa de vida. “Políticas de redução da ingestão de sódio podem evitar mais de 2 milhões de mortes até 2025 e 7 milhões até 2030”, diz Francesco Branca, diretor do Departamento de Nutrição e Segurança Alimentar da OMS, no relatório. “Não podemos falhar nesse objetivo de saúde pública alcançável e acessível.”
Desafio semelhante se aplica ao açúcar. Uma robusta revisão de estudos, que acaba de ser publicada no periódico científico The British Medical Journal, associa o consumo exagerado a diversos desfechos negativos — não apenas ganho de peso e diabetes tipo 2. Cada copo de 250 mililitros a mais de refrigerante ou suco industrializado por dia está relacionado a uma elevação de 17% no risco de doença cardíaca e de 4% no de mortalidade precoce por qualquer causa. A pesquisa acusa uma relação entre o abuso na ingestão de tudo que é doce e a maior propensão a males tão diversos como câncer de mama, osteoporose e depressão.
Não é tão fácil cortar as pitadas de sal no prato, o açúcar do café e os alimentos ultraprocessados que seduzem o paladar. Mas é essencial rever hábitos e preferências — o que, na prática, significa abrir menos pacotes de comida pronta e priorizar refeições caseiras. E isso antes que uma avalanche de problemas de saúde venha à tona. “O conceito hoje é de prevenção primordial, com alimentação saudável, horas adequadas de sono e prática de atividade física sempre, não só quando a doença se instala”, afirma Maria Cristina Izar, diretora da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp). O que não exclui, claro, a necessidade de intensificar as medidas de controle entre pessoas que tiveram infarto ou derrame ou convivem com enfermidades crônicas.
A diminuição no uso de sal e açúcar passa por um complexo trabalho que não engloba apenas ações educacionais para melhorar escolhas à mesa e controlar a tentação dos excessos, mas também pelo fomento ao acesso a um padrão alimentar e a ingredientes mais saudáveis — desde a infância. Daí o apelo da OMS por políticas nacionais que regulamentem toda uma cadeia de produção e consumo com impactos significativos no bem-estar da população. “É preciso debater o papel da alimentação e trazê-la para o centro das nossas vidas de novo, porque as escolhas que fazemos retroalimentam todo o sistema”, diz o cientista Eduardo Nilson, do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP).
Nesse ponto, embora ainda ostente índices elevados no consumo de sal e açúcar per capita, o Brasil já se coloca como exemplo de país no caminho de mitigar danos. Após oito anos de discussão e uma consulta pública com 82 000 contribuições, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estabeleceu o novo modelo de rotulagem, que prevê o símbolo de uma lupa nas embalagens de produtos com alto teor de sódio, açúcar e gordura saturada. Em vigor desde o ano passado, a mudança permitirá uma avaliação mais fácil e consciente na hora das compras.
Outra frente, encabeçada pelo Ministério da Saúde, foi o acordo com a indústria para a redução massiva no uso de sódio. Em 2018, o governo anunciou um corte de 17 000 toneladas do nutriente em quatro anos. “O Brasil ficou bem situado no relatório da OMS porque já tem a declaração obrigatória para essa redução”, comenta Nilson. “Outros países possuem metas voluntárias, e isso tem menos impacto, pois não prevê sanções às empresas.”
Esse é um tema que não deve ficar só na mão das indústrias e dos governos, é também individual. A receita para escapar dos pacotinhos e driblar a paixão por salgados e doces não é segredo. Contempla menos produtos prontos e mais frutas e hortaliças na despensa e, à mesa, pratos mais coloridos e diversificados, feitos com especiarias e temperos naturais. Com disposição, treino e paciência, o paladar vai se surpreender com os novos sabores. E o saleiro e o açucareiro poderão ficar para a história.
Afinal, qual é a dieta ideal?
Qualquer planejamento alimentar que se preze estipula moderação no consumo de sal e açúcar. Mas, no afã de melhorar o corpo e a saúde, é comum as pessoas partirem para dietas pré-moldadas, e muitas delas volta e meia viralizam na internet. Atenta ao fenômeno, a Associação Americana do Coração (AHA, na sigla em inglês) resolveu analisar os dez cardápios mais populares nas redes e constatou que as famosas dietas paleolítica (rica em carnes) e cetogênica (focada em gorduras) são as menos recomendadas do ponto de vista cardiovascular. “A quantidade de desinformação sobre esses padrões de alimentação nas mídias sociais atingiu níveis críticos”, afirmou o médico Christopher Gardner, professor da Universidade Stanford, nos EUA.
A entidade fez um esquema de pontuação dos cardápios baseado em orientações de proteção ao coração de acordo com as evidências científicas — o que inclui o equilíbrio na ingestão de nutrientes como carboidratos e gorduras. No ranking final, a campeã foi a DASH, sigla para dieta de controle da hipertensão. Ela prescreve maior consumo de frutas, verduras, grãos integrais e carnes magras, modelo semelhante ao da dieta nórdica. Na sequência, vem a prestigiada dieta mediterrânea, também rica em ingredientes naturais, mas com um toque a mais de azeite de oliva, pescados e doses moderadas de vinho tinto. Dietas veganas e vegetarianas ficaram em destaque, mas a AHA sugere, nesses casos, acompanhamento médico a fim de corrigir, se necessário, deficiências de ferro e vitamina B12 devido à falta de produtos de origem animal no menu diário.
Os especialistas ainda propõem o resgate de pratos caseiros tradicionais e regionais e de hábitos que foram perdidos na sociedade moderna, como sentar-se à mesa para comer com calma na companhia da família. Isso também se reflete na saúde.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840