O racismo é uma das heranças mais hediondas do colonialismo no Brasil. É uma praga disseminada na estrutura social do país, que tem consequências terríveis na forma como as pessoas se relacionam no cotidiano, no trabalho e até ao interagir com instituições como a polícia ou o judiciário. As consequências subjetivas disso são óbvias, mas uma pesquisa científica publicada recentemente revela que, mesmo as agressões não físicas, podem deixar marcas graves na saúde das vítimas.
A pesquisa revela que quem vive mais episódios de discriminação racial, sofre alterações no cérebro e tem um envelhecimento acelerado, capaz de ser observado por modificações no genoma. “Pessoas negras têm uma chance muito mais alta de desenvolver mais cedo problemas relacionados ao envelhecimento”, disse Negar Fani, pesquisadora da Escola de Medicina da Universidade Emory e responsável pela pesquisa, em entrevista a VEJA. “Nosso trabalho mostra que esse envelhecimento acelerado pode ser uma consequência do efeito dos episódios de racismo no cérebro.”
Quais os efeitos do racismo na saúde?
Utilizando um questionário, os pesquisadores avaliaram a frequência de discriminação racial sofrida por 90 mulheres negras estadunidenses e depois analisaram dados de ressonância magnética e análise epigenética para avaliar a correlação entre a mais episódios de racismo e alterações biológicas observadas. Os resultados foram publicados no JAMA Network, um renomado periódico científico com foco em saúde.
O que os resultados revelaram foi que as mulheres submetidas a episódios discriminatórios mais frequentes tinham mais fibras nervosas ligadas ao pré-cúneo, uma área do cérebro relacionada ao estresse e à ruminação, ou seja, uma região que faz com que o indivíduo reviva mentalmente acontecimentos da vida real. “Esse trabalho une todas as peças do quebra-cabeça, mas o resultado não nos surpreende, já que trabalhos anteriores haviam revelado os efeitos amplos psicológicos desses episódios de descriminação”, diz Fani.
Os pesquisadores ainda investigaram os efeitos epigenéticos desses episódios. A medida que as pessoas envelhecem, elas adquirem marcas no DNA capazes de modificar o comportamento dos genes – as sequências de informações que guardam a receita de cada ser vivo. Através dessas marcas, é possível prever com bastante precisão a idade de uma pessoa. O que a pesquisa revela é que indivíduos submetidos a mais episódios de racismo tem marcas epigenéticas compatíveis com as de pessoas mais velhas biologicamente, o que explica o porquê do adoecimento precoce dessa população.
O trabalho é importante pois ele estabelece uma relação direta entre experiência subjetiva e consequências físicas no cérebro e no genoma, desafiando a ideia de que mente e cérebro são coisas distintas. Também na última semana, um outro artigo, publicado no periódico da Academia Americana de Ciências, tenta explicar essa relação. De acordo com os resultado da investigação, a atividade das mitocôndrias — um componente das células responsável pelo uso de energia — pode ser a responsável por fazer com que experiências psicossociais, como as discriminações, se reflitam em consequências estruturais no sistema nervoso.
Essas consequências são permanentes?
A pesquisadora explica que os efeitos, embora físicos, não são irreversíveis. “O cérebro é um órgão plástico e essas mudanças também podem acontecer de maneira positiva através das boas experiência”, diz Fani. De acordo com ela, essas marcas biológicas podem ser balanceadas por meio da troca de experiência com indivíduos que passaram por situações parecidas e de estratégias como terapia ou meditação.
Negar alerta, no entanto, que a responsabilidade de lidar com isso não deve ser individual. “Há estratégias pessoais que podem ajudar, mas esse trabalho vem para validar um problema para o qual nossa sociedade não dá a devida importância”, explica Fani. “Os episódios de racismo muitas vezes são inconscientes e é por meio da conscientização que eles são evitados, assim como as suas consequências.”
Existem outros efeitos conhecidos?
Há, no entanto, um problema que agrava ainda mais esse cenário. Uma das experiências mais frequentes relatadas pelas participantes é a discriminação em ambientes de saúde. Isso faz com que, além de sofrer os efeitos deletérios da racismo no corpo, elas ainda não recebam o tratamento adequado nos ambientes de cuidado.
Os efeitos disso podem ser visto nos dados, que mostram, por exemplo, que pessoas negras sofrem mais violência obstétrica e são mais vitimadas por condições como infecções sexualmente transmissíveis e cânceres de mama ou próstata. “O racismo condiciona a vida das pessoas negras em todas as suas fases, desde a possibilidade de terem um parto adequado, de nascerem vivas até a forma como morrem”, disse Andrêa Ferreira, cientista da Fiocruz Bahia e da Associação de Pesquisa Iyaleta, à Agência Brasil.