Polêmica nada doce: aspartame pode aumentar risco de câncer?
Rotulado como 'seguro' desde os anos 1980, quando fez sucesso imediato, o adoçante se torna alvo de novas pesquisas
De tempos em tempos, os substitutos do açúcar se sentam no banco dos réus no tribunal da nutrição, acusados de causar efeitos colaterais deletérios. Até agora, a maioria foi inocentada, mas os edulcorantes, como são tecnicamente conhecidos, seguem na mira dos estudos e diretrizes científicas. O alvo da vez é o aspartame — amplamente utilizado pela indústria e pelos consumidores, ele acaba de ser classificado como “possivelmente cancerígeno” pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (Iarc), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS). A qualificação é fruto de uma revisão de 1 300 pesquisas sobre o produto e, ao que tudo indica, será chancelada na sexta-feira 14, quando um comitê misto da OMS e da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) vai publicar um novo parecer sobre aditivos alimentares.
Rotulado como “seguro” desde os anos 1980, quando fez sucesso imediato por ser o primeiro adoçante e eliminar qualquer traço de amargor, o aspartame nunca deixou de aparecer como alvo de estudos sobre sua possível associação a tumores. Mas daí a ligá-lo à ocorrência de câncer vai uma longa, complexa e controversa distância. A maior parte das pesquisas costuma ser feita em laboratório, com cobaias, o que não permite extrapolar resultados para humanos, ou se baseia em análises observacionais sobre os hábitos e a prevalência de doenças em uma parcela da população, o que, de novo, não comprova sem sombra de dúvida a relação de causa e efeito. Esforços não faltam: no ano passado, um estudo francês contendo dados de mais de 100 000 pessoas concluiu que quem consome adoçantes artificiais como o aspartame corre risco ligeiramente maior de ter câncer.
A reclassificação recomendada agora pela Iarc foi desancada pela indústria do setor. Aqui, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (Abiad) declarou “corroborar a segurança para consumo do aspartame, um dos ingredientes mais pesquisados da história, com mais de noventa agências de segurança alimentar aprovando seu uso”. Uma das críticas à reclassificação reside na dificuldade de se cravar que o uso contínuo de uma substância isolada na dieta pode elevar o risco de tumores. “O que tem ficado cada vez mais claro é a relação entre o consumo frequente de alimentos ultraprocessados e o desenvolvimento de alguns tipos de câncer”, diz o médico Pedro Exman, do Centro Especializado em Oncologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. “E temos de levar em conta que o surgimento da doença é multifatorial, ou seja, influenciado por histórico pessoal e familiar e exposição a vários agentes ambientais.”
Uma das preocupações levantadas por especialistas é que, ao contraindicar o aspartame, um número expressivo de pessoas pode considerar que a melhor saída é voltar a ingerir açúcar — esse, sim, um malfeitor com elo comprovado entre seu uso excessivo e o ganho de peso, que leva a uma maior propensão a tumores. No doce mundo das guloseimas açucaradas, ressaltam os entendidos, o bom senso e o equilíbrio têm sempre que prevalecer. “Se a OMS reclassificar o aspartame, não podemos estender a advertência para todos os adoçantes”, lembra o médico Rodrigo Moreira, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem).
Presente em larga escala nos produtos diet e zero açúcar e ingrediente crucial nos refrigerantes dessa categoria, o aspartame segue agora a trilha percorrida por outros adoçantes, como sucralose e ciclamato, acusados de aumentar o risco de câncer e depois reabilitados (com reticências). Em maio, a OMS, que nunca deixou de denunciar ameaças à saúde nos substitutos do açúcar, publicou uma diretriz contrária a seu uso para perder peso, por não serem feitos para esse fim (a prescrição original é para pessoas que não podem ingerir açúcar, como aquelas com diabetes) e pela suspeita de ampliar o risco de doenças cardiovasculares.
As diretrizes da OMS não têm força de lei e servem prioritariamente para abrir espaço para a reflexão. No universo da medicina, não há quem condene sua recomendação básica de que as pessoas priorizem uma alimentação mais natural e balanceada e uma rotina de exercícios como estratégia para emagrecer os assombrosos índices de obesidade na população do planeta. Como a fórmula, mais do que conhecida, não é obedecida pela maioria das pessoas, a dieta personalizada, com ou sem adoçantes, acaba sendo imprescindível na luta contra o excesso de peso, com todas as controvérsias que esses regimes acarretam. No entra e sai dos edulcorantes no tribunal da nutrição, uma coisa é certa: a sentença final não será dada tão cedo.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2023, edição nº 2849